Como sempre digo, ser mulher é um desafio permanente em nossas sociedades. Mas, nascer mulher no continente africano é ainda mais complexo. Somamos muitos países com diferentes etnias, grande diversidade de culturas, mas, em todos eles, a mulher sofre todos diversos tipos de restrição. Imaginar que possamos, um dia, reverter esse quadro é o que nos mantém em defesa da igualdade de gênero e nos estimula a continuar buscando alianças.

Foi exatamente assim que ocorreu comigo, mesmo tendo uma educação relativamente encorajadora. Fui criada com certa liberdade, porém, sempre cobrada a respeitar e seguir a tradição do meu povo. E nela, o lugar da mulher é abaixo dos homens. Somos educadas para obedecer e servir. Claro, isto inclui o pacote completo: marido, filhos, casa. Praticamente nesta ordem de prioridade. O valor da mulher é proporcional à sua capacidade de desempenhar as funções de esposa, mãe e dona de casa e, qualquer outra habilidade pode ser considerada como um elemento desnecessário. Quando a mulher não consegue garantir o mínimo desses quesitos, ela é naturalmente colocada no limbo da sociedade e passa a ser alvo de discriminação ainda maior. Assim é o comportamento da mãe África com suas filhas.

Nada melhor do que o tempo, entretanto, para nos brindar com oportunidades e exemplos de vida que abrem caminhos diferentes para escrevermos um novo capítulo na história deste continente. Um capítulo em que as mulheres se fortalecem, conquistam direitos e usufruem da liberdade de ser o que são. Há algumas décadas muitas de nós têm colaborado para mudar este cenário e por onde eu passo, sempre me deparo com alguma guerreira.

Há dois anos, em visita ao projeto da ONG em Kinshasa, na República Democrática do Congo (RDC), tive a chance de fazer um depoimento aberto sobre a minha experiência de vida, comentando sobre os desafios que enfrentei quando fui diagnosticada com HIV+. Uma das enfermeiras do centro de atendimento aproveitou a ocasião para pedir que sua amiga viesse conversar comigo sobre a situação em que se encontrava, pois havia muita semelhança com minha história. Quando ela se aproximou, pude reconhecer de imediato que o sentimento de injustiça e a falta de esperança haviam tomado conta dela. Abatida pelos seus problemas, o que mais lhe tirava a força era a discriminação que vinha sofrendo dentro do seu núcleo familiar.

Para resumir os fatos, a mulher tinha se casado com um militar que ocupava um cargo no pelotão de frente da RDC e, por muitos anos, manteve uma relação harmoniosa dentro de casa. Conquistaram uma boa condição de vida material, em um sobrado confortável, e viviam bem até surgir a cobrança para terem filhos. Impedida de engravidar, após quinze anos de casamento, o marido cedeu à pressão familiar e buscou a solução em outro relacionamento. Fez filhos com outra mulher e, sendo o homem da casa, nunca o confrontou por isto. Ela se contentava com o casamento tal como viviam e se confortava com a ideia de que, pelo menos, era ela a esposa oficial, portadora do sobrenome do marido (na RDC, embora o marido possa ter mais de uma mulher, apenas a uma delas é reconhecida pela lei).

Seguiu a vida acompanhando o marido e dedicando-se como enfermeira, profissão que lhe rendeu experiência suficiente para cuidar do marido até a sua morte e também para desconfiar dos sintomas que ele apresentou quando ficou severamente doente. Foi então que ela resolveu se submeter ao teste de HIV e se descobriu soropositiva, dando inicio ao seu tratamento.

O casal tinha bens em comum e os sogros, antes mesmo de passar o período do luto, a procuraram para reclamar posse da casa e de outros pertences, alegando que, por ela não ter dado filhos ao marido, perderia o direito sobre tudo. Os filhos fora do casamento eram reconhecidos pela lei e também apareceram em sua porta para requerer o que lhes era devido. Pressionada por todos os lados, ela entrou em desespero. Isto fortaleceu a cumplicidade dos familiares do marido contra ela, que passou a viver um período bastante estressante.

Foi justamente neste momento que ela me encontrou e, trocando ideias sobre sua situação, concluímos que a lei estava a seu favor e tudo o que ela precisava fazer era se concentrar nos seus direitos. Sendo uma mulher esclarecida ela, não podia desistir de tudo. Era necessário retomar o tratamento de maneira correta e juntar forças, inclusive física.

Há um mês, quando estive em Kinshasa para mais uma etapa do nosso projeto, nos encontramos novamente. Quase não a reconheci. Desta vez, uma mulher de cabeça erguida, irradiando alegria e autoconfiança. No seu relato, pude constatar seu esforço para tomar os destinos pelas mãos e fazer valer seus direitos. Ela criou coragem para se impor junto à família do marido e entrou com um processo para garantir a posse sobre parte dos bens. Em comum acordo, cedeu espaço para um dos filhos e seus sogros se instalarem na parte de cima do sobrado, buscando manter, ao mesmo tempo, sua independência. Continua trabalhando como enfermeira e vive positivamente. Procura ajudar outras pessoas, principalmente mulheres, no enfrentamento do diagnóstico e na adaptação à realidade que esta condição nos impõe. E trata-se de uma realidade dura.

Na RDC, a prevalência do HIV+ é de 1,2%, embora em Kinshasa seja de 1,3%. São poucas as pessoas que se submetem ao teste e a falta de informação é inversamente proporcional ao preconceito e estigma em relação a tudo que diz respeito ao HIV e à AIDS. Entre as mulheres infectadas, a maior parte não é alfabetizada e vive em condições de marginalização. Após o diagnóstico positivo, a exclusão é uma das primeiras formas de punição para essas mulheres e o trabalho de resgate e reestruturação psicoafetiva e social delas é bastante complexo.

A falta de estrutura para assistir a população é sentida em todas as áreas, mas no caso específico do HIV/AIDS, a situação é bastante comprometedora. Há diferentes organizações não-governamentais internacionais no país e mesmo assim os projetos não dão conta da demanda. À exemplo de outros países africanos, a assistência é precária no interior, sobrecarregando os grandes centros. Além disto, nem todas as organizações adotam a abordagem integrada, restringindo o atendimento à área clínica apenas.

Também, a exemplo de outros países vizinhos, raramente encontramos projetos que visam a defesa dos direitos das mulheres. O combate à violência de gênero é uma luz muito fraquinha no final de um túnel muito comprido. Tão incipiente que, todos os meses, os centros de saúde registram um número significativo de mulheres violentadas. Imagino, então, se todos os casos de abuso contra a mulher fossem realmente denunciados.

A história daquela mulher, com qual acabei estabelecendo laços de amizade, e toda essa realidade sociocultural que insiste em forjar estatísticas desfavoráveis para nós, africanas, me fazem entender que as mulheres são mantidas na posição de vítima, em grande parte, devido à ignorância. Temos medo de enfrentar as situações e as pessoas que nos ameaçam porque desconhecemos nossos direitos. Não ousamos nos defender e acabamos subjugadas pelos homens.

Na África, em geral, são raras as mulheres que saem dessa condição. Mas elas existem em número cada vez maior e, como dizia no início, continuo lutando porque alimento a esperança de um mundo colaborativo, que respeite as pessoas como elas são e reconheçam seu valor, independentemente do gênero, da classe social econômica ou da sua religião.

* Versão em português elaborada por Andrea Silveira, autora da biografia da Maimouna Diallo sob o título “Guinée Fagni: a trajetória de uma mulher africana – a história de todas nós”, que pode ser baixada gratuitamente em PDF e/ou E-Pub.

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  • Maimouna Diallo

    Nascida na Guiné, África, vem realizando um intenso trabalho em favor das pessoas vivendo com o HIV/AIDS, como coordenad...

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