A chica que escreve da semana é a Pilar Bu, poeta, doutoranda em Teoria Literária pela UNICAMP e fundadora do Leia Mulheres Goiânia. Já publicou vários livros e também em diversas revistas eletrônicas como Lavoura, Ruído Manifesto, Raimundo e Escritoras Suicidas.

Vamos à entrevista! 😊

Como de costume, para começar você poderia contar um pouco de sua trajetória como poeta? Por que começar a escrever? E mais, por que continuar escrevendo?
Bom escrevo desde sempre, sou filha de uma devoradora de livros, em casa tinha muitos muitos livros disponíveis.  Por outro lado, meu pai também curtia bastante ler e a música na casa dele era algo muito presente e importante, o samba mais especificamente. Eles foram separados por toda a minha vida, então nas duas casas sempre fui muito estimulada culturalmente aos sons, os sentidos, a poesia em suas múltiplas formas e um pensamento de que a educação é uma forma de libertação muito poderosa.

Comecei a escrever poesia porque precisava encontrar formas de me expressar, de viver, de existir para além dos meus medos, dúvidas e angústias sempre muito latentes em virtude de crises de ansiedade e pânico. Escrever me desampara bastante, mas é uma forma muito especial de elaborar as dores também. Eu sigo escrevendo por isso, para me manter de pé, reconciliar dores dentro de mim, para compartilhar lutas e afetos, para criar redes, acredito muito no poder mobilizador e transformador da literatura e a poesia é mesmo um lugar de encontro, de potencializar e transbordar coletivamente.

Bom, minha trajetória como poeta começa então em casa. E depois, mais especificamente em 2009, quando fiz pela primeira vez a oficina do Marcelino Freire. Eu já escrevia, mas tinha uma certa vergonha e senti que ali tudo começou efetivamente. Eu me senti acolhida, em senti encontrada, podia mostrar e discutir textos, podia ouvir outras vozes. Foi muito especial e ele é um cara generoso. Publiquei o Linha Turka, um poema que escrevi dentro da oficina, na coletânea Maus Escritores, pelo Selo Demônio Negro. Veio a crise e tive que adiar o sonho da poesia e da literatura como uma atitude pra vida. Eu fiz letras, mas trabalhava em banco.

Depois em 2015 passei no Clipe da Casa das Rosas, passei com o projeto do Ultraviolenta, e fiz durante um tempo até me mudar de São Paulo para Goiânia. Lá, uma das cidades onde meu coração mora, muita coisa efetivamente começou a acontecer. Eu sou uma garota também do cerrado né. Comecei a publicar em revistas eletrônicas, como a Mallarmargens, a Germina, entre tantas outras. Fui integrante de um coletivo feminista chamado Minaescriba e voltei a dar aula de escrita criativa, criei o D’versos, um grupo de escrita naquele ano também. Em 2016 fundei o Leia Mulheres Goiânia, abandonei o banco e entre no mestrado em literatura da UFG, dei ainda mais oficinas de escrita, palestras e esse rolê acadêmico é gostoso também, circulei por algumas cidades no interior de Goiás, aprendi demais, o corpo assim todo aberto no universo.

Na época, meu pai já estava muito doente e eu tinha muito medo de ele não ver o Ultraviolenta publicado. Troquei de editora, fui recebida lindamente na Kotter e o livro saiu em 2017, ele foi o primeiro leitor do livro. Uma semana depois do lançamento em São Paulo, meu pai partiu desse mundo. Não me viu mestra, não me verá doutora e nem mãe, mas viu o Ultra publicado.

Ainda na época do Ultra eu já estava escrevendo o bruxisma, mas de volta à São Paulo, em 2018, fui monitora do Marcelino Freire e fiz novamente a oficina de escrita dele. Ali o livro, enquanto concepção estética, narrativa e de compreensão do mundo foi feito. Especial demais, sou muito grata a ele por sempre me pegar pelas mãos. No fim do ano ganhei um edital da Urutau e o livro saiu lindo, feroz, porrada, do jeito que gosto, em 2019.

Você poderia nos contar um pouco sobre as suas influências. Quais nomes da literatura te marcaram? Qual foi sua última leitura?
Eu acredito que atualmente tenho me sentido muito influenciada por autoras que estão super ativas agora, enquanto conversamos, vou lendo e vou me conectando de maneira muito fluida, quase energética (risos). Então vou citar alguns nomes, mas, sabendo que são muitos mais e que estou deixando muita gente de fora: Elizandra Souza, Luiza Romão, Lupe Gómez, Gioconda Belli, Conceição Evaristo, Nadifa Mohamed, Angélica Freitas.

Eu realmente acredito que a vida é mais bonita se compartilhada e vejo que a minha poesia tenta muito dialogar com outras mulheres, traçar planos, tramas, redes, teias em que a gente se encontre. Assim, minha última leitura foi Becos da Memória, da Conceição Evaristo, que eu nunca tinha lido, apesar de atualmente estudar Ponciá Vicêncio. Que encontro bonito com Maria Nova.

Em 2017 você publicou “Ultraviolenta” que me deixou muito interessada pela premissa. Poderia compartilhar um pouco sobre essa obra com os leitores? Como surgiu a ideia por trás dela?
O Ultraviolenta é a minha filha gótica, meu livro de poemas curtos feito porrada, ou como uma amiga diria “poemas como vidro: duros, translúcidos, cortantes”. O livro surgiu dessa vontade que eu tinha, muito grande de viver de literatura, mas me sentir completamente atada a uma realidade profissional que não correspondia ao que eu era. Profissionalmente me sentia vazia, doente, como se estivesse violentando há anos tudo que eu era. Na vida pessoal tudo ia maravilhosamente bem, meu companheiro sempre me apoiando muito e sendo o cara mais incrível. Quando eu digo que ele abala a minha misandria todo mundo ri, mas é real. Um dia tive uma crise de pânico terrível, violentíssima, e resolvi que precisava voltar para a literatura de todas as formas, como professora mais formal de literatura e como escritora.

Escrevi o livro catarticamente, eu escrevia pra não doer tanto com meus próprios demônios pessoais, para não ser engolida pela misoginia de cada dia, para trocar de pele e reelaborar a minha vida. É um livro bem gótico, bem violento no sentido de uma palavra ferida mesmo, soturno, noturno, mas que foi incrível poder produzir. Fico feliz de ter escrito o livro. E a ideia era essa mesmo, como uma cobra, uma serpente, um ouroboros que engole a própria cauda eu queria repensar a minha vida e fazer tudo diferente.

Acho bonito que até hoje as pessoas se interessam pelo Ultra, se interessam pela minha serpente e gostam do livro. É um soco no estômago.

Depois em 2019 você publicou “Bruxisma” pela editora Uratau. Poderia contar um pouco sobre os poemas desse livro?
O bruxisma é um livro que se agarra muito à vida, ao desejo de viver. Eu tinha perdido meu pai, tava desamparada no mundo, tentando me encontrar, sofrendo que só com o luto e pensei: que eu sou? Voltando para dentro e me abrindo pro mundo eu resolvi resgatar as mulheres que me compõem: a minha família matriarcal, o feminismo, as que caminham ao lado, as que vieram antes, as que me influenciam, as que estão distantes. Bruxisma é um livro sobre tecer teias, evidenciar bruxarias diárias, lutas, resistências, persistências e desconstruir o feminino tradicional.

É um livro sobre a potência de mulheres quando se encontram e de como todos nós ganhamos com a empatia, a alteridade. Um livro que surge de como essa potência me ampara e me amparou. É sobre feridas compartilhadas, sobre as magias simples, sobre a poesia com desejo de subversão. O muito me dói, mas dói em muita gente né, então que possamos acolher essas dores, potencializar os fatos, extrapolar os limites, contrariar todos os manuais e normas de conduta, que possamos aceitar as diferenças. É um livro gritado também, mas incrivelmente sem maiúsculas e quase sem pontuação. Acredito mesmo que só estou vida por conta da insistência de uma deusa louca e desvariada e ela é muito latino-americana e incendiária. Sendo assim: deixa queimar.

Além disso, você também é doutoranda em Teoria Literária pela UNICAMP, certo? Como vê a relação entre esse aprendizado teórico acadêmico e sua poesia? Há alguma troca e intersecção entre os dois campos?
Tem tudo a ver né. Não pra dissociar as duas coisas. Até porque tanto a literatura quanto a academia são lugares interditados para as mulheres. Eu estudo quatro romances contemporâneos escritos por mulheres e como a memória é atravessada por questões de gênero, então tudo se liga. Tudo se intersecciona. Tá tudo ali, só que de outra forma. Acabo acessando muitas autoras e sendo influenciada por elas a escrever. Então eu gosto de ligar os dois mundos e dialogar com eles. Problematizo tudo onde quer que eu esteja (risos), afinal, senão for nós, quem vai fazer?

Como foram suas experiências de publicação? O que mais te marcou no processo?
Foram processos bastante diferentes, mas eu fui extremamente bem acolhida nas duas editoras pelas quais eu publiquei, tanto na Kotter quanto na Urutau. Na Kotter uma amiga mandou o Ultraviolenta e o Sálvio me ligou, conseguimos estabelecer um excelente diálogo e ele me deu abertura, por exemplo, para ter a capa que eu queria, feita pelo meu marido. Achei bonito, porque eu já tinha tido uma primeira experiência um pouco confusa, difícil mesmo com uma outra editora que tinha se interessado pelo livro, e estava um pouco cansada. Eu tinha muito medo de não dar tempo do meu pai ler o livro, mas deu tudo certo. Foi um excelente diálogo. A edição ficou linda e a minha serpente até hoje arrasa por aí.

Na Urutau eu ganhei um edital, no final de 2018, tive uma acolhida muito linda também, a revisão foi feita pela Débora Ribeiro e essa mulher é incrível demais, caramba! O lançamento foi feito com mais três autoras, em uma noite linda na Casa das Rosas. Eu sei lá, realização de um sonho mesmo ver esse rolê compartilhado de afeto. A capa foi o próprio Wlad, o capista da editora, quem fez e eu acho que ele acertou em cheio, achei potente e emblemática. O Tiago também é sempre muito solícito quando eu preciso. Fiquei muito contente. Sigo fazendo várias coisas bacanas com eles e a minha bruxa voa bastante, fico feliz.

Foi uma longa estrada conseguir publicar a primeira vez, mas valeu a pena.

Por fim, há algo que você gostaria de dizer para outras mulheres que escrevem? Ou, alguma mensagem final?
Escrevam! Ocupem todos os espaços, mesmo quando te digam para não estar ali. Se apoiem, criem redes, se acolham. Vamos trocar figurinhas. De fato, o mundo dói muito para nós, tem horas que a gente fica descrente, mas seguimos perfurando os discursos, criando fendas, preenchendo as lacunas, rompendo os silêncios e (r)existindo. Eu vejo com muita beleza todas essas iniciativas de visibilização da escrita de mulheres, é maravilhoso que possamos construir esses espaços e ocupá-los. E como eu acho que a vida é melhor mesmo compartilhada, vamos juntas.

Além dessa entrevista a Pilar fez a gentileza de enviar as seguintes dicas:

Livro: “O Pomar das Almas Perdidas”, Nadifa Mohamed

Série: O Conto da Aia

Agradeço imensamente a Letícia Copatti Dogenski por ter aceitado por ter aceitado meu convite para participar e disponibilizar seu tempo para esse bate-papo online. Por hoje é só, por favor, lembre-se, leiam mais e leiam mulheres!

 

 

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  • Laura Elizia Haubert

    Laura Elizia Haubert é doutoranda em Filosofia pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Graduada e Mestre em Fil...

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