A chica que escreve da semana é a querida Dia Nobre, nascida em Juazeiro do Norte, no cariri cearense. Ela é doutora em história, escritora e poeta. Possui dois livros publicados na área de pesquisa histórica e recebeu prêmios por sua dissertação. Atualmente trabalha como professora universitária e desenvolve vários projetos ligados a literatura, história e feminismo.

Vamos à entrevista! 😊

Sempre começamos pela trajetória, então poderia nos contar sobre sua história com a escrita? Quando começou a escrever, e por que continuar escrevendo?
Comecei a escrever desde muito pequena. Criava pequenas histórias e romances ainda na infância. Na adolescência escrevi literatura de cordel e alguns foram publicados pelo Projeto Sesc Cordel (CE) e também publiquei poesias em pequenas coletâneas. Escrever para mim sempre foi um processo terapêutico. Colecionei muitos diários e cadernos onde anotava memórias e citações, mas também frustrações, alegrias, amores. Mesmo depois que comecei a fazer terapia, a escrita sempre foi esse lugar de conforto no qual me sinto amparada e livre, então escrever para mim é mesmo uma questão de sobrevivência, de me situar no mundo, de me compreender e, principalmente, de me perdoar.

Penso que a escrita e a leitura estão muito interligadas, portanto gostaria de saber um pouco sobre suas leituras. Quais suas principais influências? Há algum autor/autora para o qual você sempre retorne? Qual sua leitura de cabeceira no momento?
Tenho várias influências literárias, mas a principal delas é a poeta Ana Cristina César. Ela ocupa um lugar especial porque foi a primeira mulher lésbica que eu li e desde o início me identifiquei muito. Outras autoras como Sylvia Plath, Clarice Lispector e Virginia Woolf me acompanharam durante a minha adolescência e sempre retorno à essas quatro autoras quando preciso me inspirar. Gosto muito da literatura do José Saramago, Milan Kundera, Albert Camus, Valter Hugo Mãe e José Eduardo Agualusa que também conheci ainda na adolescência. Mais recentemente, comecei a ler outras autoras relevantes, como Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus que se tornaram referências para mim. Outra escritora que me conquistou nos últimos anos foi a Chimamanda Adichie, que é africana e traz muitos temas ligados à identidade, memória e história, campos do saber que me fascinam. No momento, estou lendo O Xará da Jhumpa Lahiri e tenho descoberto muitas coisas interessantes sobre a cultura oriental a partir dela e de autoras como Rupi Kaur e Amita Trasi

Você recentemente acabou de publicar seu primeiro livro de poesias pela Editora Penalux, o “Todos os meus humores”, certo? Poderia nos contar um pouco sobre ele.
O livro traz questões relacionadas a um processo de autoanálise que já leva algum tempo. A maioria dos textos foram retirados dos meus diários e cadernos que foram organizados em quatro partes: sanguínea, colérica, fleumática e melancólica, que correspondem aos humores da teoria humoral de Galeno. Nele, eu abordo temas como as relações afetivas entre mulheres (amantes, mães, avós) e sobre a violência contra a mulher em suas diversas formas, principalmente, aquela mais subjetiva e sutil que nos relega ao lugar da loucura. Por isso, o tema da saúde mental percorre todo o livro, não só por falar das doenças e da medicação, mas para provocar uma reflexão sobre o que é doença e o que é o lugar que nos foi imposto em uma sociedade que criou instituições de poder com o objetivo primordial de controle dos nossos corpos e da nossa vontade. Nós fomos medicalizadas, moldadas pela indústria da beleza, sofremos com a heterossexualidade e com a maternidade compulsória; foi criado um modelo de feminilidade que nos é inalcançável e nos convenceram de que tudo isso era “normal”. Quando nos colocamos contra tudo isso, somos taxadas de loucas, dramáticas, arrogantes, e já fomos queimadas como bruxas e internadas em hospitais psiquiátricos por muito tempo. Meu livro é uma forma de dizer que está tudo bem não se enquadrar nos moldes sociais e que nós precisamos nos aceitar e nos cuidar da melhor forma possível.

Fora da escrita literária você já teve outros dois livros publicados na sua trajetória acadêmica. Poderia também nos contar um pouco sobre eles?
Sim. Os dois livros (O Teatro de Deus e Incêndios da Alma, ambos estão à venda na Amazon) são resultados, respectivamente, da minha dissertação de mestrado e tese de doutorado. Neles investigo os silenciamentos impostos às mulheres, pela Igreja, no final do século XIX e, especialmente, na tese, eu trago o caso da beata Maria de Araújo, uma mulher negra que foi vítima de um processo episcopal e a posteriori em um processo da Congregação para a Doutrina da Fé (escritório que substituiu o Santo Ofício no século XIX) e foi com isso, silenciada e apagada da memória local e da historiografia.

Aliás, como você vê a relação entre sua formação e a sua escrita? Há um diálogo entre as duas atividades?
A minha escrita literária é anterior à minha escrita acadêmica e creio que isso me ajudou muito no desenvolvimento das minhas pesquisas, dando aos meus textos acadêmicos, mais leveza e mais poesia, coisas que a gente geralmente não encontra na formalidade da Academia. Já na escrita literária, eu bebo muito dos conceitos que estudei, há muitas referências, principalmente à mitologia e aos clássicos gregos, então, creio que elas dialogam muito bem.

Muitas leitoras escrevem ou gostariam de escrever. Que conselhos você daria para quem deseja se tornar escritora ou aprimorar-se na escrita?
Acho que a leitura é fundamental para aprendemos a escrever. Ler vários gêneros, mas principalmente, o gênero que você pretende escrever. Estar em contato com autoras contemporâneas é uma das benesses que a tecnologia promove hoje, e creio que devemos aproveitar muito essa oportunidade de observar o processo de escrita de outras mulheres, conversar com elas, compartilhar textos e ouvir o que as pessoas com mais experiência tem a dizer. É importante também seguir sua intuição e não fazer algo somente porque está na moda. Se puder, participe de clubes de escrita ou faça os desafios que algumas autoras propõem em seus perfis no instagram. Escreva! Experimente buscar palavras estranhas e sinta o que elas têm a dizer, assista filmes ou séries e tente recriar a história dos personagens. A escrita não é um processo solitário. Ela é feita de referências, de diálogos. É construída diariamente, por isso, considero que fazer da leitura e da escrita um hábito é fundamental.

Agora, poderia nos contar um pouco também sobre como foram seus processos de publicações? O que mais te marcou neles?
A publicação para autoras iniciantes pode ser bem complicada mas no meu caso, foram processos relativamente tranquilos. A publicação dos meus livros acadêmicos, foi, de certa forma, uma consequência do meu trabalho, uma vez que ambos ganharam prêmios (só a tese ganhou três prêmios, entre eles, o Prêmio Nacional de Teses da Capes) a publicação já estava no horizonte. Já a publicação do livro de poesias tem trazido um misto de emoções: ansiedade, angústia, medo, vergonha, mas também muitas surpresas maravilhosas. Ao contrário do que eu pensava, publicar não foi tão difícil. Tive meu livro aceito por três editoras, mas foi no diálogo com a Editora Penalux que me senti mais à vontade e acolhida. Creio que para cada autora é uma experiência distinta, mas o que mais tem me marcado é o cuidado da editora com o meu trabalho e a recepção dos leitores. Ouvi e li feedbacks muito importantes e carinhosos e me sinto muito feliz que meu livro esteja trazendo alegria e identificação para muitas mulheres. Apesar de saber das questões relativas ao mercado editorial, entre elas, a pouca distribuição, acredito que hoje temos, com as redes sociais, muitas possibilidades de fazer nosso trabalho chegar a outras pessoas. As zines, blogs e plataformas como o Medium são uma pequena amostra disso.

Por fim, há algo que você gostaria de dizer para outras mulheres que escrevem? Alguma mensagem final?
Como estudiosa do feminismo, me dei conta há algum tempo de que o machismo se sustenta na ideia da rivalidade feminina, algo que nos foi colocado como natural desde sempre. Minha mensagem é: apoie o trabalho de outra mulher! Ler, compartilhar e elogiar o trabalho de mulheres que escrevem (ilustram, pintam, fotografam, tatuam) é uma ponte para uma literatura mais diversa e rica de experiências. Prestigiar, estimular, divulgar e comprar a arte produzida por mulheres é crucial para que enfrentemos o machismo, a lesbofobia e o racismo cotidianos. Precisamos ler mulheres negras, indígenas, lésbicas, bissexuais, trans, do norte, do centro-oeste e do nordeste (porque é importante também não ficar somente no eixo sudeste-sul). Vamos ler mulheres gordas, deficientes físicas ou visuais e surdas. Vamos escrever personagens reais, que dialogam com nosso lugar de existência e resistência. Apreciar todas as formas de ser mulher no mundo é um bom começo para uma literatura plural e uma grande experiência para autoras e leitoras.

Além dessa entrevista deliciosa a Dia fez a gentileza de enviar as seguintes dicas:

Um dos livros que eu indico fortemente é o Ponciá Vicêncio da Conceição Evaristo que para mim é um livro completo, com uma narrativa simples mas com questões complexas, personagens bem definidos e com a escrita rica da Conceição.

Recomendo a série Fleabag, uma série de televisão de comédia dramática britânica criada e escrita por Phoebe Waller-Bridge e produzida pela Amazon.

Gostaria de agradecer imensamente a Dia Nobre por ter aceitado por ter aceitado meu convite para participar e disponibilizar seu tempo para esse bate-papo online. Por hoje é só, por favor, lembre-se, leiam mais e leiam mulheres!

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  • Laura Elizia Haubert

    Laura Elizia Haubert é doutoranda em Filosofia pela Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Graduada e Mestre em Fil...

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