Imagine você, ao invés de estar em sua casa acordando sábado de manhã e passando um café na cozinha, está concentrado há dias no acampamento Luta pela Vida, em Brasília. É uma mulher, mãe, criança, avó, filha, irmã, prima de milhares de outras pessoas, que assim como você, não tem mais nada a perder a não ser estar a quilômetros e quilômetros de sua própria casa para poder garantir a própria sobrevivência. Para garantir que você sobreviva, que a floresta sobreviva, que a sua cultura sobreviva.

Apenas isso que é pedido: uma sobrevida. Porque há centenas de anos já expropriamos, violentamos e assassinamos quase a totalidade dos ascendentes dessas pessoas. Essas pessoas, para nós, não eram consideradas gente. Eram bichos, eram pessoas sem alma, objeto. Hoje em dia, se os indígenas fossem considerados objetos ainda estariam equiparados ao valor que os brancos dão à mercadoria. Nem isso são: são uma excrescência, uma aba suja que precisa ser polida para garantir que a branquitude não seja maculada com sua teimosia em existir.

Sou, branca, descendente de italianos, classe média do sul do Brasil. Falo agora a partir da minha etnia de branca. Me comprometi com a tentativa de fazer as contas com os horrores que meus antepassados perpetraram, mas também não acredito que exista força em me sentir culpada apenas (porque de culpabilizar indivíduos por erros coletivos já estamos fartas, não é mesmo?). Por isso sei que em minhas mãos pesa o derramamento de sangue dos antepassados dessas pessoas.

Julgamento STF Marco Temporal
Indígenas de todo o país acompanharam o julgamento que pode decidir o futuro da demarcação de terras/Foto: Mídia Índia

Lembro nesse momento de uma narrativa que circulava em minha família: uma mulher sozinha na floresta, nos primeiros anos do século 20, mata um bugre para proteger a si e a seus filhos na ausência do marido. Ensinadas a ter medo, a considerar indígena menos humano porque daí os assassinatos não pesam na consciência. Uma mulher, umas crianças pequenas e um indígena, envolvidos todos em uma tragédia que teima em nunca respingar naqueles que verdadeiramente agem com monstruosidade.

O adiamento da decisão sobre a demarcação de terras indígenas na última semana, realizado pela elite de homens brancos e ricos que governa esse país, é mais uma expressão da tranquilidade que temos em normalizar a luta extrema a que essas pessoas estão engajadas. A dor do indígena parece tão usual, tão natural. Como se isso fosse “o que elas fazem” desde sempre. Fugir de genocídios e tentar lutar pela própria terra que existe debaixo dos seus pés. É verdade. Nunca sequer demos um minuto de sossego a essa população. Há séculos.

Essa semana li um relato muito interessante da jornalista norte-americana Nelly Bly, que em 1885 se internou voluntariamente em um hospício na Blackwell’s Island, em Nova Iorque, para denunciar as condições pavorosas que as internas viviam naquele tempo, se tornando um relato fundamental para incentivar a luta antimanicomial que ainda nos assombra (os crimes dos sangues dos manicômios também os temos de pagar em nosso país).

terras indígenas
Foto: Mídia Ninja

O livro, Dez dias em um hospício, saiu recentemente pela editora Fósforo. Em determinado momento do relato de sua internação, Bly, ao viver no corpo os horrores aos quais as internas eram submetidas diariamente, teve duas certezas: que a maior parte das mulheres ali eram completamente sãs; que qualquer pessoa submetida a vários meses sob aquelas condições degradantes terminaria por enlouquecer cedo ou tarde.

Assim como diversos povos opressores têm tido que fazer as contas com os seus crimes coloniais, nós como nação estamos compreendendo perfeitamente a escolha da elite branca do país: deixar morrer. Ou nos comportamos como Lady Macbeth, que enlouquece vendo as manchas de sangue em suas mãos, ou como Macbeth, que enlouquece vendo a floresta se aproximar do palácio, prestes a engoli-lo em punição pelas crueldades que sabe que cometeu em nome do poder. Ou nos afundamos em culpa paralisadora, ou entramos em uma mania de perseguição em que todos são uma ameaça a você, até mesmo uma floresta.

Talvez o aspecto mais difícil de lidar nesse momento crítico do Brasil seja poder ver claramente em qual lugar da história você se posiciona. A partir de qual narrativa ou história você foi constituído, quem é você nesse processo de décadas, séculos de existência humana? Descobrir que seus pais, avôs, irmãos e filhos mataram, torturaram, estupraram, venderam e destruíram pessoas, países, povos, famílias não é um processo simples, porque requer um olhar crítico para as pessoas que aprendemos a venerar sem questionar.

Boaventura de Souza Santos, em sua proposta das epistemologias do sul, chama a atenção para a necessidade de construir um novo senso comum como um processo fundamental na sociedade atual. Sonho com o momento em que nosso senso comum vai superar o “índio é tudo vagabundo” dos arrotos etílicos de um almoço de domingo normal no sul do país.

Vai encontrar beleza, poesia e humanidade na existência indígena para além do exotismo e do pitoresco (plagiando eternamente os colonizadores europeus). Vai encontrar os sujeitos e sujeitas, os seres humanos com direito à vida que são, e que por isso, não merecem ter as decisões de sua vida constantemente adiadas e soterradas pela classe política branca e elitista do país, que pode tomar café da manhã em sua casa, com sua família, sem precisar temer pela própria vida diariamente.

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  • Barbara Biscaro

    Barbara Biscaro é atriz/cantora e pesquisadora nas áreas do teatro e da música. É Doutora em Teatro pela UDESC e coorden...

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