Domingo, 23 de maio de dois mil e vinte e um. Estou em Florianópolis faz quase uma semana e ainda acordo cedo como se estivesse em Turvo. Logo reconheço meu quarto e volto a dormir um pouco mais. Desta vez, vim  com o coração mais apertado pelos limites que o Parkinson impõe à minha mãe, e sofro. É-me difícil aceitar sua perda da mobilidade e os embrulhos da memória. Por que tem que ser assim?

Em Florianópolis, não fossem os rostos parcialmente cobertos com a máscara, não saberíamos da pandemia. As pessoas se deslocam para o trabalho, à escola, às compras, estão nos bares, nas ruas, mercados, restaurantes, praias. Passou o medo? Está tudo liberado? Só em Santa Catarina, perdemos 15 mil pessoas. Somam 445 mil óbitos no Brasil. O patricida, genocida, lunático e psicopata é o responsável. Seus ministros mentem na CPI da Pandemia para proteger um presidente sem moral e descerebrado. Mentem sem escrúpulos. Como mentem!!

Nesta semana, dia 18, tivemos o Dia Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, instituído em 2000 por Lei Federal. Esta Lei propõe sensibilizar, mobilizar e convocar a sociedade a participar e engajar-se contra uma das faces mais cruéis e perversas das violações de direitos humanos: a violência sexual de vulneráveis. A data remete a Araceli, menina de oito anos que foi raptada, drogada e violentada física e sexualmente por jovens da classe média alta de Vitória (ES), e o corpo foi abandonado em um terreno baldio. Esse crime, ocorrido em 1973, permanece impune até hoje, como milhares de outros que se arrastam e protegem homens como se fosse um pacto sinistro machista.

Para marcar esse dia, o presidente inominável instituiu o Programa Nacional de Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes. Seu discurso foi pífio, vergonhoso e desfocado do tema. Preocupação com a causa?? Nenhuma. Bastaria pôr em prática o Plano do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e o Estatuto da Criança e Adolescente com seriedade, disponibilizando recursos humanos e promovendo ações educativas através de políticas públicas de Estado.

O que esperar deste Programa criado à revelia de políticas públicas, planejamento e recursos? Neste Maio Laranja, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos limitou-se a divulgar uma cartilha com dados estatísticos e informações sobre onde e como denunciar casos de violência contra crianças. Nenhuma análise ou referência à necessária educação de gênero e sexualidade, nenhuma proposta de políticas públicas consistentes, nada.

A ministra tem se declarado contrária aos estudos de gênero, diversidade e sexualidade dos currículos escolares. É sabido que a escola é o lugar de aprendizados de como proteger-se, dizer não, denunciar, respeitar e compreender os sentidos da convivência da paz, sem violências e preconceitos. Muitos casos de violência revelam-se na escola, especialmente nas aulas de educação sexual, quando alunas e alunos se dão conta dos abusos, na maioria das vezes dentro de casa. Mas a ministra é favorável ao ensino remoto… sem palavras.

Até quando Damares vai agir como a tia do Zap?”, interroga-se Andrea Dip. Em 2019, a tal ministra disse publicamente que meninas eram estupradas porque “não usavam calcinha”, demostrando o tamanho de sua ignorância.

Eu vivi a infância e parte da adolescência sem nenhuma informação sobre sexualidade, nem em casa, nem na escola. O que me diziam era para me cuidar e não cometer pecados, e nas situações que enfrentei eu não sabia como agir. “Os homens são todos uns brutos”, dizia minha nona, recorrendo à experiência de uma vida de muito trabalho, muitos partos, sofrimentos físicos, morais, psicológicos e patrimoniais. Hoje eu sei do que ela falava.

Aprendi ouvindo, observando, sentindo. Numa ocasião, era 1987, eu trabalhava na ACARESC com mulheres, adolescente e crianças do meio rural de Navegantes. Quando visitei uma casa, uma menina, visivelmente aflita, perguntou se podíamos falar a sós. Fomos para outro lugar e foi quando eu soube que ela largara a escola para dar conta do trabalho no cuidado da casa e irmãos menores. Ela tinha 13 anos.

Entre rodeios, perguntou-me como podia saber se estava grávida. De meu susto inicial, expliquei… é que um vizinho a violentava sob ameaças e ela estava com muito medo da reação dos pais, e pediu que eu não contasse a ninguém. Fiquei arrasada. O que fazer? Na época não havia canais de denúncia, as mulheres eram silenciadas, seus corpos controlados e submetidas ao pátrio poder. O medo do pai violento a sufocava. Contar para a mãe? Não tinha coragem.  Como lidar com uma situação dessas? Levei o assunto para meus superiores na empresa. O conselho? Deixar que a família resolvesse, não era nossa responsabilidade. Inferno. Quem a ouviria?

Noutra ocasião, numa escola, sugeri a uma menina cortar parte dos cabelos, que eram muito longos, maltratados e escondiam parte do rosto. Disse a ela que tinha rosto bonito e ficaria mais leve com cabelo menor, até me ofereci para cortar se quisesse. Estávamos ao lado de um canteiro da horta escolar, longe da turma e sentamos no chão. Seus olhos molharam e, com voz embargada, confidenciou-me que seu padrinho a proibia de cortar. Mas por quê? perguntei. “Se eu cortar os cabelos ele me bate… ele gosta de pegar”.  Segurei sua mão e, aos prantos, ela contou-me o que ele fazia com ela, a ameaçava, puxava seus cabelos enquanto praticava sevícias nojentas. Abracei-a e chorei. Hoje sei das cicatrizes que sangram na alma e no corpo por toda uma vida, dos traumas e silêncios doloridos.

Consumida com o depoimento, contei à professora e, para minha surpresa, ela disse que sabia do que se passava, mas não tinha o que fazer pois o tal padrinho era dono da terra onde fora construída a escola e provedor de recursos à igreja local.

São duas histórias que não esqueço, como outras e outras que fui ouvindo no ofício de extensionista rural e depois como professora. Passados mais de 30 anos dessas duas histórias, o que terá acontecido com essas crianças? Nesse tempo todo, o que mudou? Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que, em 2019, no Brasil, a cada hora, quatro meninas brasileiras foram estupradas. Mas estas denúncias são em torno de 10% do que acontece. Sabemos que, em 2020 e 2021, com o isolamento imposto pela pandemia, as violências sexuais aumentaram, infelizmente.

Volto à questão que arde: por que existe violência sexual? Porque há violentadores. E por que há violentadores? Porque o machismo, o patriarcado, a disputa por virilidade, poder e posse estão tão bem estruturados na teia social que cobra padrões de comportamento masculino violento e possessivo, e os naturaliza. A construção cultural do homem como superior à mulher e o modelo de família patriarcal ainda tem profundas raízes na sociedade contemporânea.  Não se nasce violento, torna-se violento.

Reafirmo: somente uma educação voltada ao respeito, uma educação de gênero e sexualidade pode eliminar a toxidez das violências sexuais contra crianças e adolescentes. Nas minhas próprias experiências, sei que teria agido diferente em situações de assédio e abusos se tivesse sido informada e orientada, e teria tido melhores condições de saber o que fazer quando me deparei com confissões graves e doloridas por parte de tantas meninas.

“Eu fui tão machucada que tenho medo de ficar perto das pessoas”. (Luana, 6 anos)

Marlene de Fáveri, 23 de maio de 2021. Florianópolis.

Marlene de Fáveri

Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC. Membro do Laboratório de Relações de Gênero e Família (LABGEF), do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), do GTGênero (ANPUH Brasil) e da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB). Autora de artigos, capítulos de livros e artigos de História, Gênero, Feminismo, Divórcio, Mercado do Sexo, Mídias. Foi processada em 2016 por ex aluna no teor da ‘escola da mordaça”, vencedora no processo. É feminista, poetisa, escritora e militante pelos Direitos Humanos e cidadania, com foco nos direitos das mulheres. Participa do Grupo de Poetas e Escritores Mario Quintana, fundado em Itajaí em 1988, com publicações em coletâneas e diversas premiações, como para o Off Flip 3023. É colunista no Portal Catarinas - jornalismo com perspectiva de Gênero. Em 2021, publicou dois (02) volumes de Crônicas da incontingência da clausura – cotidianos da pandemia (Letras Contemporâneas) uma série de 54 crônicas escritas no calor dos acontecimentos da pandemia, com foco no feminismo e nas fissuras de viver num tempo pandêmico. Em 2022, escreveu e organizou o livro O Ultrarrealismo na cena literária de Itajaí (Traços & Capturas), e o livro de poesias feministas: Se pulsa, arde e resiste (Infinitta Leitura).

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