Por que sem feminismo não há agroecologia? A pergunta provocou o debate de abertura do Festival “Santa Catarina Agroecológica” nesta sexta, 6 de outubro, em Florianópolis. Agricultoras/es, técnicos/as de extensão rural e demais participantes ouviram experiências de personagens tantas vezes silenciadas: as mulheres que produzem agroecológicos e lutam por equidade de direitos nas propriedades rurais.

Além de valorizar a agricultura ecológica, estimulando a troca de conhecimentos e experiências entre grupos e organizações de Agroecologia da região sul do Brasil e da América Latina, o Festival que acontece no Auditório da Epagri, se propôs a destacar a participação feminina nesta atividade. Historicamente encarregadas da alimentação familiar, são as mulheres que priorizam a produção agroecológica, mais saudável para seus filhos e filhas e menos agressiva para o ambiente.

Adélia Schmitz: “Mulheres e agroecologia querem a transformação social”|Foto: Carlos Pontalti/Cepagro.

“Criei nove filhos sem farmácia e sem médico”, conta, orgulhosa, Adélia Schmitz. Liderança do Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil (MMC), ela acredita que as práticas agrícolas que priorizam a alimentação sem agrotóxicos mobilizam especialmente as mulheres. Adélia também vê afinidades profundas entre a agroecologia e o feminismo. A primeira delas, por fazer frente ao agronegócio. A segunda, por questionar a estrutura patriarcal.  “Tanto as mulheres quanto a agroecologia querem a transformação social e contestam o sistema capitalista”, argumenta.

Tanto quanto a agroecologia, o trabalho feminino é subvalorizado nas propriedades rurais, engolidas pela cultura do agronegócio que prioriza as atividades consideradas rentáveis.  Tarefas elementares como o cuidado com a saúde preventiva através da alimentação saudável, são frequentemente invisíveis.

Elas também raramente têm direito de definir onde será investido o dinheiro da família. “As mulheres não têm autonomia sobre o próprio patrimônio. Muitas vezes são alienadas da própria herança, que fica para os filhos homens”, afirma Diva Vani Deitos, coordenadora da Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense (APACO).

Protagonismo feminino na roça

Para Catia Cristina Rommel, “as capacidades não são dos gêneros, mas dos seres” | Foto: Carlos Pontalti/Cepagro.

Há dois anos, as engenheiras agrônomas Cátia Cristina Rommel e Daphné Arenou decidiram mergulhar juntas na experiência de criar uma vida menos mercantilizada, com autonomia alimentar e ambiental. No sítio que adquiriram em Anitápolis, construíram com as próprias mãos a casa onde vivem e a horta de onde tiram parte dos alimentos que consomem. Também aprenderam a produzir itens de higiene pessoal, como sabonetes naturais, que vendem na feira da cidade.

No sítio, a relação é harmônica e as decisões são compartilhadas. Mas, na comunidade, o protagonismo de duas mulheres em uma propriedade rural causa estranhamento. “A influência do patriarcado é muito forte. Lá, a identidade das mulheres costuma ser a do marido. Elas são ‘a mulher do fulano’”, conta Cátia. Para a agricultora, “as capacidades não são dos gêneros, mas dos seres”.

Violência, pauta clandestina

Há décadas, Adélia Schmitz fala abertamente sobre agroecologia e plantas medicinais. Mas há um tema que faz parte do cotidiano das mulheres do campo e que ela precisa omitir da programação dos encontros que promove nas comunidades. “Se a gente falar que vai tratar de violência contra as mulheres, elas nem aparecem. Os maridos não deixam”, conta.

Se nas áreas urbanas a violência doméstica segue em números crescentes, nas zonas urbanas os casos ocorrem protegidos pela privacidade. Segundo a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) do Governo Federal, 12.328 moradoras de áreas rurais pediram ajuda ao Disque 180 no ano passado. Sem autonomia financeira, vivendo em propriedades distantes e com menos acesso à informação, muitas das mulheres do campo não reconhecem os próprios direitos.

Mas, quando o assunto surge nas rodas de conversas femininas, acontecem revelações dolorosas. “Uma vez, uma senhora de mais de setenta anos chorou por vários minutos antes de conseguir falar. Quando parou, contou que uma vez, estava arando a terra com o marido quando um dos bois teve um mal súbito. E ela foi colocada pelo marido para substituir um dos bois”, contou. “Muitas vezes chorei com as mulheres que lembravam a violência que sofreram”.

Beth Cardoso: “Precisamos antes de tudo lutar pela libertação da mulher em casa” | Foto: Carlos Pontalti/Cepagro.

Os relatos e as reflexões conjuntas despertam as mulheres para a situação de opressão. “Tratar deste tema gera conflito na família porque a mulher que participa volta para casa com a cabeça diferente. Precisamos antes de tudo lutar pela libertação da mulher em casa”, afirmou Beth Cardoso, da Articulação Nacional de Agroecologia.

Fortalecer a cultura agroecológica é também lutar pela autonomia das mulheres do campo. Para as lideranças femininas da agroecologia, é preciso estruturar políticas públicas capazes de prover financiamento, terra e assistência técnica focadas nesta área. “Geração de renda nos dá autonomia. As mulheres precisam de condições para produzir agroecologia: assistência técnica, terra, crédito”, defende Diva Vani Deitos. Outro desafio, o da distribuição dos alimentos, pode ser vencido com a colaboração entre as mulheres do campo e da cidade. “Na roça, nós produzimos o que a cidade consome. Temos que nos unir, mulheres do campo e da cidade, para forjar políticas públicas que permitam a venda direta ao consumidor, sem atravessadores”, opina Adélia Schmitz.

São as condições básicas para que a agroecologia e o feminismo possam provocar a transformação que almejam. “O feminismo é sobre se indignar contra o sistema explorador. As mulheres querem saúde e ser tratadas com respeito e igualdade, e não ser iguais aos homens. Todos temos direito de consumir um alimento que dê saúde e condições dignas de viver”, ensina a agricultora.

Participantes do festival recebidos com ramos de Marcela | Fotos: Carlos Pontalti/Cepagro.

O Festival “Santa Catarina Agroecológica” acontece até o domingo, dia 8 de outubro, e reúne, além de agricultoras e agricultores, estudantes, técnicas e técnicos de extensão rural e profissionais de outras áreas interessadas no debate. Além do Seminário “Mulheres e Agroecologia”, a programação engloba ainda o 11º Encontro do Núcleo Litoral Catarinense da Rede Ecovida de Agroecologia. Paralelamente, acontecem ainda palestras e oficinas com temáticas agroecológicas no Espaço Pergalê, sítio urbano localizado no bairro Ratones, no Norte da Ilha. A promoção é do Cepagro e pelo Grupo Ilha Meiembipe da Rede Ecovida de Agroecologia, com apoio da Fundação Banco do Brasil (FBB) e da Inter-American Foundation (IAF).

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  • Ana Claudia Araujo

    Jornalista (UPF/RS), especialista em Políticas Públicas (Udesc/SC), mãe de ninja.

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