Escrevo ainda sob o impacto da notícia de que um juiz de Brasília autorizou expressamente o uso de técnicas de tortura contra estudantes que estão ocupando escolas públicas. E que isto que foi chamado pelo juiz de “técnica de convencimento” é o que a CIA usa contra supostos terroristas, violando pactos e acordos internacionais de direitos humanos.

Neste contexto, me lembro também: poucos dias antes dessa decisão assombrosa, um vídeo muito especial havia viralizado na internet. Nele, uma menina chamada Ana Júlia, de 16 anos, ergueu a própria voz na Assembleia Legislativa do Paraná para dar seu testemunho a respeito das ocupações das escolas públicas. Estava claro que não era fácil pra ela fazer aquilo, já que os meios de comunicação e o governo vinham tentando criminalizar os estudantes por se manifestarem politicamente.  Uma menina franzina, com olhos meio insones, quase tremendo, quase chorando. E mesmo assim, ela ergueu a própria voz ali, no meio de um bando de homens mais velhos e engravatados. A pergunta com a qual ela abria a sua fala era límpida e desassombrada, um tiro no peito dos cínicos: “De quem é a escola?”

O desconcerto que a fala dela gerou, desde aquele primeiro momento, mal pode ser descrito. Está certo: ela falou sobre os golpes que a Educação tem sofrido com clareza e articulação. No entanto, no fundo das discussões apaixonadas que o discurso dela provocou, acho que existe ainda uma chave importante para entendermos o que aconteceu ali, e que não diz só às palavras que foram ditas ou mesmo às causas políticas representadas e defendidas mais explicitamente por ela. Diz respeito do fato de que estava naquele palanque prestigioso uma menina imersa na vida pública e se pronunciando a respeito do que tem pensado e vivido. E isso ainda é loucamente raro entre nós.

Nesse sentido, posso entender melhor a violência da repressão que se acirrou logo em seguida. Entendo também o teor das críticas que ela recebeu desde então, basicamente desqualificando-a como “doutrinada”, “ingênua”, “imatura” ou “emotiva”. Pros donos do poder, é mesmo imprescindível que uma voz como a dela seja rapidamente sufocada.

Porque se não fizerem isso, podemos lembrar que a nossa sociedade mal tolera uma menina que erga a própria voz. Por isso elas são convencidas desde pequenas a sentir vergonha de si mesmas: porque de alguma forma milimetricamente medida elas são feias ou inadequadas ou tímidas demais ou exibidas demais. E desse jeito – ah, desgraça das desgraças! – não vão agradar suficientemente os homens e vão se precipitar no caos. Por isso elas são sistematicamente incentivadas a ficar caladas apenas posando ou servindo a vontades alheias, sonhando com pouco mais do que um vestido novo.

Inclusive porque, se não fizerem isso, o que poderia acontecer?

As meninas poderiam, por exemplo, se engajar o suficiente na causa da educação desde os 11 ou 12 anos e realmente passar a incomodar os que dependem da ignorância delas, e aí poderiam até levar um tiro na cabeça pra aprenderem a não se meter em conversas de homens. Mas também poderiam sair vivas e, quem sabe, continuar lutando e acabar ganhando um prêmio Nobel da Paz aos 17 anos, como aconteceu com a paquistanesa Malala Yousafzai. Ou então elas poderiam organizar uma resistência interna aos desmandos de um governo autoritário e encarnarem, assim, a voz da consciência de todo um país. E aí poderiam ser capturadas justamente quando estivessem distribuindo panfletos entre estudantes, e então “julgadas regularmente” como traidoras da pátria, torturadas e guilhotinadas apenas 24 horas depois. Mas também nesse caso poderiam, passados alguns anos, ser profundamente reverenciadas e ainda virar nome de escola em todas as cidades do seu país – como aconteceu com Sophie Scholl, uma alemãzinha que entrou na política também aos 16 anos e foi presa pela política nazista poucos anos depois, em 1943.

Se os donos do poder, então, não tomarem providências no sentido de sufocar a voz das meninas, elas podem ainda, por exemplo, virar escritoras que criem personagens inesquecíveis e emblemáticas que por vezes sejam, também, meninas. Como, por exemplo, Alice Walker, que no romance A cor Púrpura recriou boa parte da história dos Estados Unidos do início do século passado através das cartas que uma menina negra, pobre a semianalfabeta escrevia a Deus ou a uma irmã que talvez estivesse afogada. Como, por exemplo, Tony Morrison, que em seu primeiro romance também escolheu olhar seu país da perspectiva de uma outra menina negra e aterrada que, na década de 40, rezava fervorosamente todas as noites para ganhar olhos azuis e assim sobreviver ao massacre diário que enfrentava.

E devemos lembrar: esse movimento não acontece só com as meninas americanas, mas também com as brasileiras. Se as vozes delas não forem caladas, elas podem por exemplo escrever romances capazes de revolucionar muito da nossa literatura ainda em plena adolescência, como fez Clarice Lispector em 1943, quando publicou Perto do Coração Selvagem. Elas podem tematizar o modo como as meninas reunidas criam laços e forças maiores do que elas, e ainda denunciar o uso de tortura em seus corpos pelo próprio Estado, como fez Lygia Fagundes Telles em 1973. Ou ainda podem voltar mais no tempo e rever oito décadas da nossa aterradora história colonial partindo dos olhos de um menina de 8 anos capturada na África e trazida para ser escrava nos rastros perdidos deste país, como fez Ana Maria Gonçalves quando publicou Um defeito de Cor, em 2006. E podem mostrar como uma menina nascida pra viver numa gaiola de ouro escravocrata pode crescer e lutar de forma poderosa pela própria liberdade nas instâncias mais públicas e íntimas a vida inteira, como fez Claudia Lage em Mundos de Eufrásia, de 2009. Ou simplesmente podem escrever o mais premiado livro da literatura infanto-juvenil do Brasil a partir dos necessários confrontos de uma menina de 9 anos inclusive com a própria família, como fez Lygia Bojunga em 1976.

Se não tomarem as providências mais loucas e brutais, portanto, sempre haverá mesmo muito a temer das meninas. E o que é mais incrível: se repararmos bem, elas estão praticamente em todos os lugares. Com blogs combativos ou megafones nas praças públicas, elas já estão mesmo contando os podres que costumam ser mais escondidos e também as boas novas, e com isso podem virar artistas, escritoras, professoras, filósofas, jornalistas, vereadoras, deputadas, presidentas. Podem até, quem sabe, nos ajudar a reencontrar uma alegria política mais profunda e uma outra ideia de poder e de nação muito além do que temos visto através da longa história acanhada que tentam nos recitar, dessa paisagem tão controlada e falsa.

Elas podem nos mostrar que tudo isso pode ser contado (e vivido) doutra maneira.

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  • Cristiane Brasileiro

    Doutora em Literatura pela PUC- Rio, professora adjunta na UERJ. Coordena projetos na área de formação continuada para p...

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