Fui acordada por uma exata voz, esta madrugada, me dizendo isso. Como um sussurro, no início, depois um estrondo: “Vote como uma mulher”.

E é certo que isso não me pedia o acanhamento das moças antigas que só copiavam o voto dos seus homens próximos e praticavam o sistemático desligamento em relação ao que ficou marcado como um mundo masculino das prestigiadas disputas sujas pelo poder,

Ah não, não mesmo. Estamos no Brasil de 2016,

de modo que considero que nossas definições de “mulher” devem ter sido atualizadas até bem recentemente,

nos lembrando que foi só há pouco mais de 80 anos que algumas de nós ganharam o direito de votar, que foi só há pouco mais de 50 anos que isso se tornou pra nós tão obrigatório quanto pros homens, e que ainda hoje há uma discrepância insustentável: somos a maioria da população e no entanto a nossa representação política ainda patina em índices que mal batem os 10%;

de modo que também estou lembrando que chegamos até a ter uma presidenta!

(e vimos que gente demais mal suportava pronunciar até mesmo esse mero nomezinho porque isso lhes feria demais os velhíssimos ouvidos);

e estou lembrando que essa mesma presidenta foi deposta do cargo para o qual foi democraticamente eleita sob argumentos rasteiros que nunca precisaram se constituir direito como provas porque, como estamos cansadas de saber, pisamos sobre um solo que nos considera prévia e gravemente culpadas

do que quer que seja

(abortos ou filhos, impulsos ou hesitações, crises econômicas ou matrimoniais etc etc),

e mesmo antes disso, aliás, essa mulher foi retratada em adesivos de carro como alvo de estupros jocosos cometidos dessa forma sequer por gente, mas por bombas de gasolina,

e mil vezes antes ouviu gritos de “vagabunda” ou “leviana”,

e mesmo antes disso era chamada usualmente de “anta” ou “porta” por qualquer subsubsíndico patético e incompetente, e até mesmo pelos seus supostos aliados.

De modo que já pudemos ver que sob o jogo político supostamente neutro há outro de cartas marcadas a ferro e fogo, e que diz pras mulheres que nele se aventuram: volte mil casas e aguarde quieta a próxima rodada. Seja só plateia, só aquele eleitorado com uma variável de sexo quase irrelevante, seja só a eventual e discreta escada para os brilharecos alheios. Nunca interlocutora; nunca adversária à altura; ainda mais raramente aquela que deve ser apoiada e aplaudida publicamente.

Talvez por isso a tal voz tenha repetido: “Vote como uma mulher” – num sentido que me impelia a votar como alguém que se lembrasse desses fatos bizarros e, diante deles, me reconectasse violenta e delicadamente ao barro comum de que fomos feitas, a essa longa perdição, a esse silêncio todo que nos atordoa, a essa escandalosa invisibilidade

até um ponto em que eu me insurgisse, e convidasse as companheiras pra que se insurgissem. Como agora. E cada vez mais. Reitero: estou convidando vocês.

E aí buscássemos formar uma espécie de irmandade de novas inconfidentes, uma grande égua de Tróia entrando sorrateiramente em território inimigo,

e aí nos colocássemos de pé como o urso ferido mas gigante que somos, ou como uma onça que salta do fundo das folhagens, enfim nítida e linda,

e nos lembrássemos de que não se trata só de eventualmente elegermos mulheres como nossas representantes ou nossas líderes, mas também de reconhecermos mais oficialmente a patente liderança que já vínhamos tendo

no que diz respeito a manter as casas e as vidas de alguma maneira funcionando, as bocas acesas dos fogões, as crianças nas escolas, os movimentos básicos e profundos de ensinar e aprender, todos os mil trabalhos realizados pelas formiguinhas mais cotidianas

(e, nesse sentido, muito do que chamamos de “civilização”),

e também no que diz respeito a manter nossa eventual vontade de matar ou de morrer tão menor do que a nossa vontade de acolher e de cuidar dos próximos, ou a nossa vontade de ultrapassar os vizinhos tão menor do que a nossa notável inclinação a desmontar os pódiuns e enlouquecer os relógios,

ou no que diz respeito à nossa posiçãozinha tão destacada dentro do opaco quadro das pessoas que visitam regularmente os maridos ou filhos presos e via de regra não matam 111 homens desarmados e não aplaudem isso ainda uma vez e não evitam incomodar sequer minimamente os assassinos,

em outras palavras: no que diz respeito a sermos guiadas por alguma coisa que não seja só medo, dinheiro ou a capacidade de nos vendermos mais completamente.

E enquanto a voz me dizia “Vote como uma mulher”, eu entendia que isso era um convite pra vir a ser esse tipo de pessoa que se reconhece como alguém que, para além das contingências biológicas patentes e dificilmente ignoráveis,

tem também uma experiência específica de vida sobre a terra

uma luta permanente e mais ou menos subterrânea pelo direito de escolher e de se pronunciar na intimidade ou em público,

e encarna, nesse sentido, uma categoria política.

E aí, estou falando desse tipo de pessoa que sim!, quer se ver mais diretamente representada, até porque as distorções são óbvias demais, mas quer também que essa representação seja grande o bastante pra olhar melhor por todos

e, nesse sentido, não se liga só a um grupo ou a um subgrupo de algum canto de página ou de partido mas, muito diversamente, encarna um olhar mais largo e

uma prática política clandestina

de convivência cotidiana e amorosa

(que inclusive, e desde sempre, se enraizou em modos de ser que extrapolam a política institucional e revelam que existe um outro jogo, ainda mais importante do que esse que está visível, sob a superfície das regras que têm nos conduzido e constrangido).

“Vote como uma mulher” – foi enfim o que continuei ouvindo hoje ao longo do dia, mesmo acordada. Foi o que então rascunhei como uma assinatura impessoal de hashtag, um bilhete secreto e quase anônimo caso alguém viesse me pedir uma sugestão pras próximas eleições. Ou como um traço de um diário que eu mesma nunca escreveria. Ou como um som que aliás sequer ouvi tão de imediato, considerando que fomos criadas com relativamente tão poucos estímulos

pra ouvir, mesmo no escuro mais íntimo ou mais público,

e mesmo de tão perto, ou sempre de tão longe,

a nossa própria voz.

Ω

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  • Cristiane Brasileiro

    Doutora em Literatura pela PUC- Rio, professora adjunta na UERJ. Coordena projetos na área de formação continuada para p...

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