No dia 16 de janeiro deste ano foi exibido o primeiro capítulo de Vai Na Fé, a atual novela das sete na Rede Globo. Logo nas primeiras cenas, uma atriz famosa procura o escritório de Lumiar e Ben para fazer uma denúncia de agressão. A mulher estava hesitante e receosa em contar sobre os fatos ocorridos com ela em público, mas foi incentivada por Lumiar, que explicou os mecanismos de proteção que poderiam ser aplicados e manifestou a opinião de que Alexa, a atriz famosa, serviria de inspiração para outras vítimas violência doméstica. Essa foi a primeira de diversas pautas importantes que a novela visibilizou desde então, mostrando como todas as pessoas são atravessadas de diferentes formas pelo racismo, pela misoginia e outros paradigmas que permeiam a sociedade e estruturam o sistema penal.

1. Sol e a importância de dar nome à violência

A história principal retrata uma violência traumática suportada pela protagonista, que afetou todos os dias de sua vida desde então. Aos 20 anos, Sol foi embebedada por um homem que considerava amigo e estuprada após perder a consciência. Durante toda a vida, guardou para si a dor do crime e da culpa que carregou por nem ela mesma entender que foi vítima de um abuso e não havia provocado a situação.

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Crédito: reprodução.

A novela retratou de forma muito sensível o caminho percorrido por Sol até que ela pudesse assimilar que viveu uma violência e que não poderia, de forma nenhuma, ser culpabilizada por isso. Ali foi possível enxergarmos como é importante nomear corretamente esses comportamentos e refletir sobre as consequências que podem advir deles. Estupro, culpa, dor, trauma. 

Importante também perceber a ambiguidade existente entre os pontos de vista da vítima e do autor dos fatos. Theo, assim como muitos outros, tem convicção de que o que praticou não foi crime, mas algo que Sol quis, pediu, permitiu… (o verbo nesses casos não costuma ser levado em consideração). Enquanto Sol, mesmo sem total consciência de que foi abusada sexualmente, nitidamente revivia o trauma toda vez em que se encontrava no mesmo ambiente que seu agressor

2. THEO, o “cidadão de bem”

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Na trama, o abusador é um empresário rico, branco, bem-vestido e não se encaixa em nada aos estereótipos de “monstros” propagados pela cultura do estupro, que existem justamente para mascarar que a violência sexual pode ser praticada por todo tipo de pessoa. Theo não é um “tarado” que apareceu num beco escuro, mas um “amigo”, que embebedou Sol propositalmente para ter relações sexuais com ela, seguiu a vida fazendo isso com outras mulheres e continua acreditando que essa é a forma natural de um homem se comportar.

No dia a dia, Theo exibe comportamentos misóginos bastante típicos do “cidadão de bem” que diz prezar pela família e veste a máscara de bom pai e marido, enquanto abusa financeira e psicologicamente da esposa e do filho.

Não entende nem faz questão de entender a gravidade dos seus atos e das poucas vezes que sua atenção foi chamada para esse comportamento agressivo, teve como resposta imediata culpar as vítimas, exibindo valores arraigados de normalização da violência, replicados no cotidiano de um homem que tem consciência de que pode fazer qualquer coisa para conseguir o que quer sem que seja devidamente responsabilizado por isso

3. Guiga e a experiência da justiça restaurativa

Para tratar de outros comportamentos ainda difíceis de serem admitidos como violência, como atos de importunação sexual, Guiga, ao ser beijada à força pelo ex-namorado, contou com a ajuda de Lumiar para a elaboração de uma proposta inovadora de reparação que não envolvia necessariamente o processo penal e suas mazelas.

Apesar da existência de um crime tipificado, foram aplicados princípios da justiça restaurativa na busca de uma solução para o caso, que resultou em um acordo entre vítima e agressor, de forma que fossem contempladas tanto a responsabilização de Fred pelo mal causado quanto a autonomia de Guiga para escolher como gostaria que o dano fosse reparado. 

Dentro dessa pauta pudemos ver a radicalização do personagem de Fred a partir do contato com dogmas masculinistas, que acabou culminando na prática de violência física contra a ex-namorada. Foi abordado ainda o caminho que o agressor percorreu, através da participação em grupos de reflexão sobre masculinidade, para o aprendizado e a tomada de consciência sobre o caráter danoso desses comportamentos

4. Yuri e a seletividade racista do sistema penal

Por fim, pudemos também acompanhar e compreender que o lado garantista do sistema penal, que efetiva a presunção de inocência e a busca de soluções menos danosas para os conflitos, acaba por contemplar apenas uma parte da sociedade, em geral branca, rica, com curso superior e condições de buscar auxílio profissional qualificado na defesa dos seus direitos.

Para Yuri, estudante negro e bolsista da faculdade de direito, o sistema penal seguiu oferecendo sua face mais medieval, realizando prisões preventivas arbitrárias, a partir da produção de provas duvidosas de reconhecimento facial e fotográfico, que reforçam o caráter racista e classista do sistema e da sociedade.

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Diferente de Fred, Yuri foi imediatamente preso duas vezes, sem praticar crime nenhum e só não engrossou as estatísticas de presos provisórios no Brasil por mais tempo, porque contou com a mobilização dos estudantes e de um grande escritório de advocacia.

É de suma importância que casos assim apareçam na televisão, não somente na formalidade dos noticiários, mas também entre as histórias de pessoas comuns, que se entrelaçam com as nossas histórias, para que possamos refletir e debater essas questões que, podem não parecer, mas afetam toda a sociedade. A prática de crimes e as consequências penais e não penais dessas violências fazem parte do nosso dia a dia e precisam ser visibilizadas, questionadas e transformadas a partir do debate e da busca de soluções. 

Vai Na Fé tem feito um excelente trabalho nesse sentido, abordando temas relevantes, sem cair nos clichês equivocados de “bem” e “mal” tão disseminados entre nós. É uma novela que mostra que todo mundo tem um pouco de mocinho e de vilão e que a penalização não é nem de longe a resposta adequada para todas as vezes que isso acontece.

P.S.: Como espectadora e grande fã da novela, quero manifestar aqui minha torcida por #Clarena e por um mundo em que cenas de violência não sejam naturalizadas enquanto demonstrações de afeto são tratadas como “polêmica”.

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  • Lívia Reis

    Especialista em Ciências Penais, co-fundadora do Coletivo Nós Seguras e do Projeto Transversais, feminista, abolicionist...

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