Meio sem querer, acabo medindo o tempo pelos livros que leio. Posso dizer, assim, que me recordo do começo desse ano com dias de muito calor e Odisseia, que o carnaval passou entre viagens de trem e The Vegetarian, que o outono vem trazendo uma brisa na qual ecoam as vozes de Stendhal e Elvira Vigna. E que 2016 me foi narrado por Elena Ferrante – e isso não é pouco.

Ao longo de seis livros – dos quais quatro compõem uma única obra – mudei de trabalho e de casa, presenciei um golpe, rompi um ligamento, tomei grandes e pequenas decisões, viajei por aí, cheguei aqui. Enquanto isso acontecia, eu também vivi em Nápoles durante a década de 60, tive dois filhos e fui abandonada pelo meu marido, e fui atrás do passado de minha mãe após sua morte misteriosa numa praia do sul da Itália. Que ano, minha gente!

Embora tenha compartilhado boa parte dessa leitura com algumas amigas, o processo de assimilação mostrou-se-me tão maior e mais profundo que necessariamente teve que passar pela tarefa da escritura – o que faz todo sentido depois de ler A Amiga Genial. E por isso estou aqui. Esse texto é minha tentativa de desfecho.

Ele não se pretende resenha (numa busca rápida de internet dá pra encontrar um punhado delas, escritas por gente que sabe o que está fazendo). Ele não se importa com a polêmica sobre a ‘verdadeira’ identidade da Elena Ferrante, cuja busca eu desprezo sinceramente – embora também esteja à distância de um clique para quem achar válida essa bisbilhotice. Ele traz apenas algo que, pra mim, é subjacente à força de sua narrativa e que merece (e precisa de) mais espaço, pois é o que lhe dá sentido e unidade. Esse texto é sobre a violência do machismo retratada em seus livros.

A Amiga Genial é a obra composta pelos quatro livros (uma tetralogia, pois) sobre amizade e história de vida de duas mulheres nascidas na periferia de Nápoles em 1944. A história é pautada na genialidade dessas mulheres e em suas trajetórias marcadas pela violência. Às vezes sutil, às vezes explícita, essa violência atinge a todos em algum momento da obra, mas é sempre aliada ao machismo que alveja de forma muito incisiva as personagens femininas. A trajetória das vidas de Lila e Lenu traz essa violência do machismo latente em suas escolhas profissionais, em seus relacionamentos, nas culpas que carregam, na atração gravitacional do território que parece sempre sugá-las. Em determinado ponto da narrativa, Elena nos leva a acreditar que qualquer escolha é um pouco ilusória. Lenu é uma das únicas do bairro que completa os estudos, que tem na literatura o ganha pão, que ‘foge’ dali. E que não é perdoada por isso de forma ostensiva, como se perdesse o status de ‘pessoa de confiança’. Sua mãe procura desesperadamente por elementos que a ajudem a entender por que a filha é prestigiada se tem uma carreira nas letras que não lhe diz quase nada, se mudou-se para longe, se suas escolhas não envolveram reviver as mesmas dinâmicas familiares e territoriais.

No campo dos movimentos sociais (marcadamente movimento estudantil e sindical) que permeiam boa parte da narrativa, Elena nos oferece construções múltiplas que vão desde a compreensão sobre os movimentos que agitavam a Itália nas décadas de 60 e 70, permitindo-nos enxergar o mundo como uma jovem de 20 anos que busca ativamente fazê-lo, passando por retratos detalhados e terríveis das condições de trabalho nas fábricas de Nápoles, culminando com as prisões de estudantes e a efervescência do movimento nas universidades. E sempre, como um eixo transversal da narrativa, como um fio condutor que é quase pegajoso, está presente o machismo que permeia todos esses espaços e relações. Elena faz questão de mostrar que nada dele escapa, que não existem lugares seguros. O machismo é vivo e concreto como nossas entranhas.

Em ‘Um amor incômodo’, aparece o machismo-obsessão resistente ao tempo (à la Dom Casmurro). O machismo que molda a vida de uma mulher perseguida desde os 19 anos de idade até sua morte, aos 63. Um machismo de resistência que contamina o olhar de uma criança e no qual as reações de violência física são amplamente permitidas.

Por fim, em ‘Dias de Abandono’, o machismo aparece de outra forma. À primeira vista, seria tentador dizer que é menos violento ou explícito justamente porque é uma narrativa introspectiva, quase uma vertigem. Mas não. A violência da queda no abismo, quando a personagem principal é abandonada pelo marido, é pontuada por tudo aquilo que nos questionamos em diversas fases da vida: autonomia/independência, papel na criação dos filhos, ageísmo. Não é uma história sobre relacionamentos que terminam e causam sofrimento, mas sobre as bases desiguais nas quais construímos nossos relacionamentos, nos colocando à beira de abismos.

Outro dia, o Ricardo Lísias escreveu mais ou menos assim: “quando homens brancos, heteros, de classe média escrevem sobre suas próprias questões, são considerados autores de temas universais. E quando mulheres, negros, etc escrevem sobre suas próprias questões são considerados autores que escrevem sobre temas ligados a mulheres, negros etc”.

Nada mais universal do que o machismo. E nada melhor do que passar um ano com Elena pra perceber que essa ‘universalidade seletiva’ cada vez menos dá conta do tanto que temos pra contar.

{Os livros que compõem a tetralogia são: A Amiga genial; História do novo sobrenome; The story of the lost child; Those who leave and those who stay. À época, não havia tradução em português para os dois últimos. Hoje, só falta o lançamento do último volume, o que aparentemente vai acontecer em breve.

Quem escreveu The Vegetarian foi a Han Kang, e o livro é sensacional.

O livro do Stendhal é O vermelho e o negro. E o livro da Elvira Vigna é O que deu pra fazer em matéria de história de amor.}

 

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  • Lenina Formaggi

    Lenina é economista, formada pela UFSC, com mestrado em políticas públicas pela UFPR. Atuou no Departamento Intersindica...

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