Parar, desistir, ceder, afrouxar, amolecer, soltar. Em tempos de tantas lutas, parecem palavras proibidas, verbos contrários a ação, atitudes reprováveis e covardes. Parar não é omitir-se. Desistir não é perder. Uma sociedade orientada ao sucesso a qualquer custo tem colocado tanta ênfase em palavras de vitória, em uma resiliência quase marqueteira, uma resistência banalizada. Um verdadeiro comércio da luta, da superação, da vitória a qualquer custo. Eu, nesse momento, escolho parar. Escolho perder. Escolho ceder.

Há alguns anos venho pensando nas perdas que teremos que aceitar para que uma nova ordem de mundo possa surgir. No discurso, tudo é uma maravilha. Mas, na prática, quando estas perdas nos atingem, entendemos a complexidade que é querer a tão hipotética paz e liberdade e, depois, viver nesta sociedade transformada.  Homens estão sentindo na pele o que é perder privilégios e “direitos” que julgavam naturalmente concedidos a eles através da ascensão das lutas dos feminismos. Heterossexuais percebem o abalo do seu mundo de vidro com ações recentes, como a transformação de homofobia em crime e com a discussão cada vez mais ampla sobre as transformações no modo como concebemos gênero e sexualidade. Pessoas brancas começam a dar-se conta da opressão e violência que a sua simples existência pode significar em uma sociedade que construiu suas bases sobre um racismo cruel e invisibilizado por um discurso perverso de “país do carnaval”. Para que novas pessoas ganhem o direito de existir, pronunciar-se, agir e propor novas lógicas de mundo, outras pessoas terão que perder espaço, campo de ação, dinheiro, prestígio. Mas quem está disposto a perder?

Quase ninguém, é o que temos visto nos últimos meses. Cada um de nós se agarrou em uma ideologia e, agora, defendemos com unhas e dentes nossos pequenos territórios, nossas pequenas lógicas. Descobrimos que para algunxs, ganhar é quase um esporte. Para outrxs, essxs mais numerosxs, perder significa não comer, não morar, não subsistir. Em nossas disputas simbólicas vejo a predominância do ato de convencer. Metáfora boa essa: convencer contém em si um vencer; carrega em sua ação umx vencedorx e umx perdedorx. Umx dominante e umx dominadx. Temos empunhado discursos duros, discursos que conclamam vencedorxs, resistentes, lutadorxs. Nesse cabo de guerra insano, nessa lógica de mundo combativa, já tivemos uma amostra de quem vai realmente perder. De alguma forma absorvemos o vencer e esquecemos que a lógica pode ser con-vencer, ou seja, vencermos juntxs. Mas, para isso, todxs precisam aprender a ceder. Vencer juntxs pode significar, loucamente, desistir juntxs.

Porém desistir do que? Eu mesma gostaria de desistir de muitas coisas. Dos meus medos, da minha mania de controle, do meu discurso auto-centrado, da minha carência excessiva, da minha insegurança. Gostaria muito de desistir de uma vida que exige que eu ganhe cada vez mais dinheiro para apenas dar conta do aluguel, que eu compre para ser feliz, que eu tenha que ser bonita e bem resolvida (o que quer que isso signifique), que o trabalho seja sinônimo de sacrifício, que a política decida sobre o meu útero, que a natureza seja um bem comprável e consumível. Eu desisto feliz das usinas nucleares, dos governos golpistas, das pessoas violentas e das passas no arroz de Natal. Mas não sei se estarei tão confortável ao perder meus privilégios de mulher branca, de pessoa estudada, de cidadã de classe média. Acho que vou querer alguém segurando na minha mão, mas tenho quase certeza que vou ter que remoer sozinha muitos preconceitos, dissabores e mágoas que eu nem sabia que existiam em mim.

Continuo dizendo… é difícil se perceber violentx, opressorx, autoritárix. Continuamente oscilamos entres diversos lados da moeda: posso ser oprimida como mulher e opressora como mulher branca. Não somos apenas uma coisa. Acumularemos diversos tipos de perdas. Podem ser perdas bobas, como a possibilidade de usar um turbante, de entrar em um local, de falar em uma roda de conversa. Porém é inegável que existem grupos de pessoas que acumulam em sua balança, historicamente, mais perdas do que ganhos. Acumulam perdas tão extensas e há tanto tempo que, a resistência ali, ganha um contorno genuíno e muito mais complexo. Honrar e respeitar isso deveria ser o primeiro passo.

Cada um de nós pode medir o tamanho da dor que é sofrer perdas, do quanto precisamos realmente de tudo ou se podemos ceder. Perder é doloroso, já nos ensina a infância…mas perder é um processo de limpeza. Para nos tornarmos adultos temos que perder todas as células infantis do nosso corpo; em cada nascimento há uma morte implícita. É o velho esquema de quebrar os ovos para ter a omelete, praticamente sabedoria de boteco. Porém, continuar a agir como crianças mimadas que não admitem o ato de perder, significa não perceber que as perdas são parte crucial de nosso processo de crescimento e amadurecimento no mundo.

Nesse sentido, eu escolho parar no dia oito de março. Escolho parar um dia da minha vida, das minhas atividades, para compartilhar o dia com outras mulheres, para tentar entender quem são elas e o que podemos buscar juntas. Parar pode ser um ato de sanidade, nesse mundo tão atropelado. Parar pode ser talvez a única coisa que eu possa fazer hoje. O significado dessa parada, para mim, é imenso. Não quero agir, ainda. Quero apenas parar. Na arte, uma das lições mais bonitas é a pausa: a pausa, no teatro ou na música, não significa a inatividade, o vazio, a cessação de algo. A pausa verdadeira é aquele momento lindo que reverbera os acontecimentos anteriores e está grávido de novas possibilidades, vibrante e vivo em sua mais perfeita imobilidade. Uma pausa pode conter o mundo. Então, talvez, o mundo possa suportar uma pausa.

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  • Barbara Biscaro

    Barbara Biscaro é atriz/cantora e pesquisadora nas áreas do teatro e da música. É Doutora em Teatro pela UDESC e coorden...

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