Sobre o lugar do branco na luta anti-racista
Há exatamente 10 anos venho trabalhando com a temática da branquitude, falando, escrevendo artigos e pesquisando sobre ela. Durante esse período, tenho podido observar diferentes reações diante das apresentações sobre o tema. E há perguntas que são constantes, as quais posso apostar que irão aparecer em todo fim de palestra. Por exemplo, é recorrente perguntarem por que eu, uma mulher branca, me interessei pelo tema. É uma pergunta que, às vezes, vem em tom de curiosidade, outras em tom de questionamento acerca da legitimidade de uma pessoa branca falar sobre isso.
Quando o público é majoritariamente branco, há perguntas constantes que remetem ao papel do branco na desconstrução do racismo: como um branco pode pautar esse assunto? O que, como brancos, podemos (pode-se) fazer? Essa pergunta vem, muitas vezes, como demanda – quase um pedido de como ser amado por negros, ou como se comportar em assembleias, discussões de movimentos sociais –, mas poucas vezes aparece como expressão de um interesse verdadeiro sobre o que de fato podemos fazer para mudar as estruturas. Quando percebo que a pergunta está relacionada a essa demanda de amor, típica de uma branquitude que não pode deixar de ser amada, de estar no centro, pouco tenho a responder, porque acho que não cabe a mim. Porém, quando percebo que a pessoa quer realmente saber o que fazer, aí sim é possível dialogar – e posso responder por horas.
Primeiro, cabe ressaltar, esta não é uma causa para os outros: é uma causa que envolve um projeto de país, um projeto de nação. Trata-se de um projeto de vida coletiva. No Brasil não há como pensar minimamente em sociedade igualitária sem pensar a questão racial. Quem desconsidera o racismo como estruturante das desigualdades sociais brasileiras não compreendeu nossa história, tampouco o legado da escravidão.
Diante disso, uma possibilidade é pensar nas instituições a que você pertence, nas quais você tem poder real de fazer algo. E eu acredito que até dentro de família, no papel de mãe ou dona de casa, há o que fazer: é possível pautar na escola, comprar de produtores negros, quem sabe, comprar bonecas e bonecos negras para os filhos, algo fundamentalmente importante, já que bonecas negras não servem apenas para negros sentirem-se representados, mas para brancos não cresceram sentindo-se o centro do mundo.
E é importante observar – diante da pergunta constante sobre o que fazer – que não há um modo único ou certo de estar na luta antirracista, mas sim modos relacionados ao grau de comprometimento com a causa, de acordo com a sua inserção no mundo. Se você é professor, seu caminho pode ser via educação, quais conteúdos são veiculados na escola, como o negro é representado? Quais imagens dos livros referem-se a negros entre tantos outros dispositivos possíveis; se você trabalha com R.H, já pensou nos processos de contratação da sua empresa? Existe um universo de estereótipos (e condutas) legitimados diariamente a serem desconstruídos: desde ouvir uma piada racista e ficar em silêncio, ou atravessar a rua quando encontra um negro pela frente, entre tantas pessoas. O importante é saber que não há como ter nascido no Brasil e não ter aprendido a ser racista. “Como fazer?”, portanto, é um processo de desaprender, exercício para o qual eu invoco o trabalho de France Winddance Twine. Em sua pesquisa (que buscou entender como brancos se relacionavam com sua branquitude a partir da convivência e interação diária com negros), ela formulou o conceito de “racial literacy”, traduzido por mim como “letramento racial”. Este é uma forma de responder individualmente às tensões raciais. Assim, ao lado de respostas coletivas, na forma de políticas públicas – a exemplo das cotas – ele busca reeducar o indivíduo em uma perspectiva antirracista.
A ideia por detrás dessa perspectiva é a de que quase todo branco é racista, mesmo sem querer ou se dar conta, já que o racismo é um dado estrutural – e estruturante – de nossa formação social. Por exemplo: uma jovem que estudou arquitetura em uma das melhores universidades brasileiras, depois de formada, projeta um banheiro de empregada com o chuveiro em cima do vaso sanitário. Ainda que o faça como se fosse natural, ela mesma não gostaria de usar este banheiro. Fazendo isso, ela está aderindo passiva e involuntariamente à ideologia racista, reproduzindo um racismo que, ao fundo, perpassa todo o nosso sistema educacional e toda a nossa cultura. É um exemplo que nos mostra como o racismo é um aprendizado e, se nós aprendemos desde cedo a sermos racistas em nossa sociedade, o letramento racial vem como proposta de desaprendizado.
O letramento racial funciona pelo exercício de um conjunto de práticas, baseado em alguns fundamentos. O primeiro é o reconhecimento da branquitude: o individuo reconhece que a condição de branco lhe confere privilégios. O segundo é o entendimento de que o racismo é um problema atual e não apenas uma herança histórica, não é apenas um legado da escravidão, que já acabou: o racismo acontece todos os dias, se reproduz cotidianamente e, se o indivíduo não for vigilante, ele acabará contribuindo para essa reprodução e legitimação. É o mesmo que acontece em relação ao machismo. Seja homem ou mulher, se a pessoa não for vigilante, ela acabará contribuindo para a legitimação e reprodução do machismo. O terceiro é o entendimento de que as identidades raciais são aprendidas, elas são resultado do modo como escolhemos viver, agir no mundo, pensar sobre ele. O quarto é tomar posse de uma gramática e de um vocabulário racial. No Brasil, evitamos chamar o negro de negro, e o branco poucas vezes consegue ser nomeado de branco sem responder “pô, não generaliza!”, como se isso fosse xingamentos e como se evitar essa palavra pudesse esconder o racismo. Para combatê-lo, temos de ser capazes de falar de raça abertamente, sem subterfúgios. O quinto é a capacidade de interpretar os códigos e práticas “racializadas”. Isso significa perceber quando algo é uma expressão de racismo e não camuflar, dizendo que foi um mal-entendido. São os inúmeros casos em que crianças negras são “confundidas” em lojas de luxo com crianças de rua, assim como mães negras de filhos brancos, por “mal-entendido”, são confundidas como babás ou empregadas. É a mesma “confusão” que opera o genocídio (a morte) dos jovens negros, mortos porque a polícia confundiu celulares, guarda-chuvas ou um saco de pipoca com armas. Não são mal-entendidos, nem confusões: são expressões pura e simples de racismo. Assim, é preciso que os brancos letrem-se racialmente, e ao mesmo tempo, rompam com as estruturas que sustentam seus privilégios cotidianos. A tarefa é árdua, com certeza. Mas isso deve ser apenas mais um motivo para começa-la, imediatamente.