O monumento não tem porta/ A entrada é uma rua

antiga, estreita e torta/ E no joelho uma criança

sorridente, feia e morta estende a mão.

(Caetano Veloso, em Tropicália)

 

Marcela Temer acaba de lançar, em cerimônia no Palácio do Planalto, um programa federal que se chama “Criança Feliz”.

Pois bem ali, e como não poderia deixar de ser, a famosa “bela, recatada e do lar” procura nos lembrar de coisinhas bem meigas: “Cada vez que beijamos nossos filhos pequenos, que conversamos com eles, cada vez que os carregamos nos braços, que lemos uma história ou cantamos uma canção de ninar, estamos ajudando em seu desenvolvimento.”

Seria hora, então, de fazermos uma pergunta fundamental: o que ela faz, efetivamente, quando nos diz isso? Sim, porque esse é um ponto crucial, quando lidamos com os discursos que nos atravessam todos os dias. Por trás das falas de toda gente, há sempre uma espécie de ação – e esta pode coincidir mais ou menos com as palavras nas quais se encarnam. (Por exemplo: a gente pergunta se tem sal, mas o que está fazendo é de fato já pedir o sal; a gente diz que “não está chateada” e pode estar informando nosso estado emocional, pode estar tranquilizando alguém ou rompendo laços de intimidade, pode estar só avisando que não vai dar pra conversar naquele momento ou afirmando a própria superioridade – só o contexto nos esclarecerá).

Pois bem… Aí dói de verdade, quando nos damos conta do tanto que as palavras podem se desconectar das ações, e de como é feito o uso político disso.

No caso da fala de Marcela Temer, me refiro a essa distância porque é justamente o governo ao qual ela está servindo que se mostra tão comprometido a passar por cima dessas mulheres que são mães, ou seja: aquelas às quais ela se dirige com tão aparente zelo. Afinal, com as “modernizações” da legislação trabalhista que estão propondo e defendendo, milhões de nós ficaremos sem qualquer garantia no emprego, cada vez mais empurradas pra informalidade e pra contratos temporários e selvagens, e nesse contexto descartadas como peças que deram defeito quando nos atrevermos a fazer coisas decantadamente sublimes como engravidar. E é nesse cenário que mal teremos tempo ou energia pra dar carinho ou colo a quem quer que seja, inclusive porque todas as pressões já terão sido feitas pra que a gente acredite que isso seria mesmo um desperdício da nossa “força produtiva”. É o governo golpista que tem sistematicamente rebaixado e constrangido mulheres, e nisso também se inclui ter sido constituído a partir de um golpe de estado contra uma mulher inocente que vinha presidindo o país. E é esse mesmo governo que tem atacado justamente o poder de mobilização e a inserção social das mulheres, destruindo os ministérios e secretarias que vinham se dedicando a políticas públicas de combate às mil violências de gênero que vivemos todos os dias.

Isto considerado, o que pode sobrar dessa recomendação da primeira-dama a respeito do “carinho” que devemos ter para com nossos filhos? O que sobra desses conselhos mimosos tão cheios de históricas pra dormir e canções de ninar? O que sobra, para além do indisfarçável gesto de autoelogio vaidoso feito por quem faz essa pregação, num mundo em que mesmo as menores brechas para o carinho têm sido tão negadas pra tantas de nós, e seu exercício tem sido capturado e exibido tão ostensivamente nesse tipo de discurso oficial como uma prescrição vazia ou uma “sensibilidade diferenciada” ligada a mais um signo de status? E, buscando relacionar as palavras às ações que elas promovem, o que sobra desses discursos meio etéreos e edulcorados além de uma manobra de dissimulação das violências muito palpáveis que os sustentam?

Avançando em sua fala, no entanto, Marcela Temer ainda esclarece melhor o encaminhamento argumentativo e o sentido prático do seu discurso: “o afeto é essencial para o desenvolvimento escolar dos nossos filhos (…) cercada de carinho e cuidados específicos desde a gravidez, uma criança terá mais possibilidade de aprendizado quando chegar à escola.”

Pois bem, que coisa: não coincidentemente, é esse mesmo governo que tem cortado verbas pra Educação mais do que pra qualquer outra área, e tem quebrado as pernas dos programas mais importantes e realmente inovadores que vinham sendo desenvolvidos. É esse governo que, ainda há pouco, escondeu as notas dos institutos federais no ENEM, e tem tratado professoras e professores da escola básica como uma classe vagabunda e preguiçosa que precisaria cumprir uma carga horária sempre maior e mais permanente. É esse governo que vai fazer com que professoras contratadas passem a sofrer a concorrência degradada de gente que sequer precisará de qualificação especial pra exercer as funções docentes. É também esse governo “conciliador” que, pra se alçar ao poder, se alimentou muito fundamentalmente de homens que são capazes de homenagear notórios torturadores de mulheres, e que recomenda que um massacre de 111 presos indefesos não deva ser chamado de “massacre”, mas apenas de “contenção necessária”. É esse governo, enfim, que está disposto a cercear professoras e professores de tudo quanto é jeito, e dificultar ao máximo o acesso das camadas mais pobres ao ensino superior – não sem antes reduzir a pó o que ainda havia de potencial formador e crítico no ensino médio. Não sem antes se mostrar disposto a jogar bombas de “efeito moral” nos estudantes que resolveram protestar contra o fechamento de escolas. Agora, enfim, já sabemos que nada disso importa, porque o destino dos nossos jovens está decidido é apenas lá na gravidez, e cabe somente à mulher que os carrega no ventre a responsabilidade por promover as tais “possibilidades de aprendizado” dos seus filhos, tão independentemente das políticas públicas que vão sendo adotadas pra essa área.
E de novo, então, preciso perguntar: o que sobra desse tipo de discurso que a primeira-dama está proferindo? O que sobra, além do esforço de responsabilizar exclusivamente as mães pelo futuro sombrio que seus filhos já vão precisar esperar? O que sobra, além dessa covardia e desse velho hábito de jogar pedra na Geni? O que sobra, além desse recorrente gesto de prestigitação que veste o que há de mais velho com uma cara nova que lhe sirva de disfarce e de enfeite?

E nem digo isso como um desses “adolescentes agressivos” que Marcela parece temer tanto, não. Digo como mulher, mãe, professora, trabalhadora. Um tipo de pessoa que se esforçaria pra entender e analisar mais de perto esses discursos só aparentemente inofensivos ou doces. O tipo de pessoa que tem investido muito tempo de vida e muita paixão insone em formar gente que possa desejar mais do que ser um fantoche político prestativo ou uma triste máscara de felicidade talhada a ferro – e, talvez, alguma dose a mais de paralisia moral e botox.

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  • Cristiane Brasileiro

    Doutora em Literatura pela PUC- Rio, professora adjunta na UERJ. Coordena projetos na área de formação continuada para p...

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