o dia começou com um buraco
na terra
cavado com atenção
por mãos de criança

e me lembrou daquele menino
indígena
pintando faixa de demarcação
no centro da cidade

você me fala de meninas
que comem terra
e eu olho para os meus pés
com poeira entre os dedos
e vejo também
o potencial de engasgar e de nutrir

com o que se tem nas mãos
— e não se trata apenas de plantar —
mas da potência da pausa
de pisar com o tempo da terra
e escavar sangues antigos
revolvendo todas as idades
o leite derramado o leite pausado

a umidade e a secura
nesses grãos
gotas
palavras
acolhedoras
ásperas

e tanto faz
é preciso tocar
pra acolher ou pra atritar
e pergunto se esse toque
é o buraco
ou o que nos livra dele
e tanto faz

a impenetrabilidade
talvez me assuste mais que
o abismo do poço

a morte é o que costuma assustar

todas as idades me visitam
ressoa nas minhas mãos
a criança velha de quem falavas
as unhas curtas na terra

a terra árida impenetrável
fere sob as unhas
nem sempre se pode
inventar um abismo
se a planície se estende
pétrea

imaginamos rios
de líquidos diversos
sangue, leite, vinho
água, éter, urina
lentamente agastando
a rigidez do solo

um rio imaginário
peixes voadores
nós dentro do aquário
um terrário
com ar suficiente apenas
mas queremos mais

 

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