“A maturidade, supondo que tal coisa existisse, era, em última análise, uma hipocrisia” (Julio Cortazar).

Ao meu redor, há algum tempo, tenho ouvido de diferentes amigos e amigas um relato em comum: a sensação de se sentir um/a impostor/a. A chegada a uma suposta maturidade dos trinta e poucos anos (às vezes mais, às vezes menos) gera em mim uma sensação curiosa acerca do ser adulta. Um misto de insegurança e confiança, como se eu tivesse aberto os olhos de repente e alguém gritou: agora é você! E eu, menina e adulta, olho ao redor e me pergunto boquiaberta: mas quem em sã consciência colocou poder em minhas mãos? Por que estão me dando tanta trela? Manter uma casa (que para uma pisciana convicta significa ocasionalmente dormir com as panelas ligadas), ensinar outros e outras, escrever um texto que vai para o mundo em forma de informação. No entorno nos vejo gerando e criando filhos, gerando e criando ideias, trabalhando, enfrentando a melancolia de domingos silenciosos ou tentando manter a sanidade no caos ético e político do país. O engraçado é que todos esses amigos e amigas que me confiaram a convicção de serem impostores/as não me parecem impostores/as. Confio neles e nelas, admiro quem são. Mas quando secretamente compartilhamos essa incerteza mútua, percebo a vulnerabilidade em que somos atirados nesse mundo, que nos exige que carreguemos tantas certezas e convicções artificiais. Nesse processo, gastamos uma enorme energia nos esforçando para não demonstrar esta leve e incômoda dúvida de que podemos estar enganadas, e por isso mesmo, enganar os/as outros/as na vertigem que a vida se torna. A sensação está ali, nos espreita por debaixo das camas, parecida com os monstros de nossa infância já esquecida, mas nem por isso superada ou perdoada.

Ser uma impostora não significa apenas ser alguém que duvida. Particularmente tenho tido horror aos opostos maniqueístas: afasto-me dos/as convictos/as demais, ao mesmo tempo não suporto as pessoas que escapam continuamente de se posicionar frente ao mundo. Nas duas atitudes uma mesma fixação: o medo insuportável do erro. Por um lado aqueles e aquelas que possuem uma certeza cega de que a sua versão de mundo é a correta (e duvidar significa arriscar todo o sistema de crenças e afetos que foram construídos até então); por outro lado aqueles e aquelas que se eximem de emitir suas opiniões, ações e desejos no mundo pelo indescritível medo de se descobrirem errados/as. Ao menos nós, as/os impostoras/es, arriscamos cientes da possibilidade de sermos descobertas a qualquer momento.

Aliás, o medo é um grande mal, que paira sobre nossas cabeças dia e noite.  Machucamos e somos machucados por sentirmos medo. Golpeamos e somos golpeados pelo terror quase infantil das perdas, da falta de amor, do abandono e da morte. Marilena Chauí, em um ensaio sobre o tema, discorre: “temos medo do grito e do silêncio, do vazio e do infinito, do efêmero e do definido, do para sempre e do nunca mais”. Enfim, tememos tudo. Infelizmente, nos dias em que estamos vivendo, tememos nem tanto as coisas, mas os uns aos outros. Temer, palavra tão usada nos últimos meses, seja em nome próprio ou verbo. Metáfora cuidadosamente alocada pelo universo para que possamos vislumbrar nosso real problema: não apenas um homenzinho careca e odioso, mas também nosso próprio medo de afrontar um mundo em mutação.

Nesse processo, assim como Cortazar escreveu, nossa maturidade é uma hipocrisia. Caso ela existisse, adultos feitos não levariam o mundo para tal destino, não se eximiriam dos cuidados e dos afetos necessários para a preservação da vida. Crescemos de rugas na pele, de tamanho da barriga, de dores nas costas, mas emocionalmente somos as mesmas crianças assustadas. Eu particularmente tinha medo de que um ladrão entrasse em nossa casa e roubasse todas as minhas roupas e eu tivesse que sair de pijama na rua. Ouço pessoas ao meu redor com medos tão esdrúxulos quanto: medo das mulheres, de negros/as, de artistas, de pobres, de homossexuais, de doentes, de estrangeiros/as, de adolescentes secundaristas. Que apoiam uma PEC 55 comemorando o fim dos elementos básicos em nossa sociedade que nos garantem a capacidade de duvidar, e não apenas o dever de temer.

Intuo que me sentirei impostora durante muito tempo, em muitas coisas. No trabalho, no amor, no teste psicotécnico. Intuo também que essa sensação não é paralisante, mas apenas combustível para compreender a pequenez humana. Sem negar o medo, admiro meus amigos e amigas impostoras, pois estão vivos porque duvidam ou duvidam porque estão vivos. Nunca saberei ao certo a ordem dessa equação. Só sei que quando nos encontramos na rua, no bar ou no supermercado nos olhamos com olhos cansados. Porque estamos todos e todas tão cansados? Este crescer que nada tem a ver com amadurecer. Este Temer que nada tem com silenciar.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Barbara Biscaro

    Barbara Biscaro é atriz/cantora e pesquisadora nas áreas do teatro e da música. É Doutora em Teatro pela UDESC e coorden...

Últimas