Enfim, depois de uma semana de tristezas e retrocessos, li a íntegra do acórdão do Min. Luís Roberto Barroso, no HC 124.306/RJ, e confesso que gostei. Mesmo sendo ele um HOMEM, branco, burguês e da elite judiciária, gostei.

Gostei das referências que se utilizou para formular seu voto, em especial da Débora Diniz, Professora Doutora e Pesquisadora da UnB, e militante ferrenha dos direitos reprodutivos das Mulheres. Ser a base para a construção do voto mais significativo às Mulheres brasileiras que lutam historicamente pelo direito ao próprio corpo merece meu destaque e meu respeito.

Além do voto, já li vários artigos e comentários nas redes sociais, muitos pertinentes – e aqui não estou considerando as vozes contrárias de um direito conquistado a duras penas – e minha pretensão, longe de ser algo pronto e acabado, é de referenciar e reverenciar uma parte específica e deveras importante do texto, no qual há anos chamo a atenção, quando sou ou me sinto provocada a falar sobre a temática do aborto:

1.5. Discriminação social e impacto desproporcional sobre mulheres pobres 

  1. Por fim, a tipificação penal produz também discriminação social, já que prejudica, de forma desproporcional, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo. Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas sem qualquer infraestrutura médica ou a procedimentos precários e primitivos, que lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito.
  2. Em suma: na linha do que se sustentou no presente capítulo, a criminalização da interrupção da gestação no primeiro trimestre vulnera o núcleo essencial de um conjunto de direitos fundamentais da mulher. Trata-se, portanto, de restrição que ultrapassa os limites constitucionalmente aceitáveis. No próximo capítulo, procede-se, de todo modo, a um teste de proporcionalidade, para demonstrar que, também por esta linha argumentativa, a criminalização não é compatível com a Constituição” – sem grifo no original.

Como explicitado no texto do acórdão, por meio de dados e fundamentações dos campos da saúde pública, o aborto existe e a tutela jurídico-penal nunca foi um fator que influenciasse na redução dos números.

Sim, as Mulheres abortam muito e sistematicamente quando a gravidez é indesejada. Reparem bem, não se trata da banalização e, sequer, a afirmação que é uma escolha simples da Mulher, ao contrário, é a decisão mais dura, dolorosa e difícil.

O diferencial se dará pelo poder econômico da Mulher, é o dinheiro que determinará as condições de segurança e higiene em que serão submetidas.

Assim como a escolha econômica do mercado ilegal de abortamento, dá-se da mesma forma, a criminalização operada pelo Código Penal (nos termos dos arts. 124 a 126, CP): é seletiva – não diferente do universo do Sistema de Justiça Criminal – e recai sobre as “Outras”, aquelas Mulheres Pobres, Periféricas e Não-Brancas.

São estas mesmas Mulheres esquecidas que, via de regra, tiveram todos os seus direitos e acessos às cidadanias sistematicamente negados pelo Estado, que sofrem a peneira da seleção dos aparelhos repressores e punitivos.

A decisão em si, assim como minhas reflexões, é algo a ser pensado e construído – mesmo que as bancadas religiosas venham novamente requentar o Projeto de Lei conhecido como “Estatuto do Nascituro” –, pois neste momento avançamos no sentido de descriminalização da prática do aborto até o 3º mês de gestação, ou seja, a prática deixa de ser considerada crime, à luz da interpretação constitucional.

Todavia, assente fica sua recepção e regulamentação pela Saúde Pública, o que significa dizer que a decisão não traz qualquer imposição ao Poder Executivo em garantir, especialmente às Mulheres Pobres, a prática segura do abortamento ou acesso legal à medicação abortiva. Traduzindo ao campo militante popular feminista: temos muito o que lutar ainda, Companheiras!

Por fim, minha sugestão é que continuemos debruçados sobre o tema – eu também seguirei a analisar o voto –, a ter outras reflexões, mas sem abrir mão de que o ABORTO não é assunto a ser tratado na esfera da política criminal, é e assim deve ser tratado, como recolocado o debate pelo Min. Barroso, um assunto de Saúde Pública e de respeito à autonomia do corpo da Mulher.

Como bem disse, “impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida?”

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  • Daniela Felix

    Mulher, feminista, comunista e militante de Direitos Humanos. Mestre em Direito PPGD/UFSC. Advogada Popular. Articulador...

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