Não sou mãe.
Tenho trinta e três anos e por escolha própria não tenho filhos. Não é algo compreensível para todas as pessoas. O dogma da realização da mulher através da maternidade perdura impávido em muitas esferas da nossa sociedade. As pessoas frequentemente perguntam “você tem certeza dessa escolha?”. Claro que não. Sou parte e fruto da mesma sociedade e, por isso, não menos imune às dúvidas, culpas e julgamentos implícitos nessa decisão. Eu me dou um respiro de ainda ter alguns anos para pensar, sabendo que este tema paira sobre a minha cabeça com uma surpreendente vivacidade. Claro, as pessoas ao redor me tratam, por vezes, com um ar de que logo mudarei de ideia e finalmente cumprirei o meu destino.
Amigas ao redor tiveram filhos, muitas outras, não. Algumas (tanto o ter quanto o não ter) por escolha deliberada ou por acaso do destino, e todas seguem lidando com a maternidade (ou a ausência dela) de uma maneira completamente diferente do modo como nossas mães a vivenciaram. Somos gerações intermediárias de uma ampla transição que questiona os papéis das mulheres na maternidade e na criação dos filhos, que complexifica o conceito de família e de normalidade. Que observa o contexto social, étnico-racial, geográfico, econômico e histórico de cada mulher para tentar compreender o “ser mãe” no mundo. Que tenta dar outros valores e significados para uma mulher que não tem filhos.
Até muito pouco tempo, uma mulher sem filhos na família significava uma outsider. Uma mulher escandalosa que decidira por puro egoísmo viver a própria vida e não se dedicar ao sagrado dever e dádiva da maternidade. Uma mulher marcada por uma tragédia pessoal de não ter podido engravidar por uma questão de saúde, que seria lembrada e sofreria diariamente esse fracasso. A tia solteirona que “naturalmente” se encarregaria do cuidado com os pais mais idosos por não ter uma vida própria. A louca, a puta que nenhum homem quis. A lésbica, não autorizada a criar filhos em um seio familiar degenerado. Isso parece lentamente estar no passado. Mas nem tanto: ser mãe, em nossa sociedade, parece ser o natural e o desejável. Não ser mãe, ainda um claro indício de que há algum problema ali.
Mas o preconceito faz nascer os mais incríveis paradoxos. Há uma crítica constante a mulheres negras e pobres por continuarem a ter filhos, uma crítica velada a mulheres brancas e “bem nascidas” por não tê-los. Implícito neste absurdo um conceito de civilidade e limpeza social sobre quais mulheres estariam autorizadas a gerar os descendentes da nação. Explícito neste paradoxo a não preocupação com as crianças ou a infância em nenhum grau: aqui o que continua valendo é uma tentativa de controle sobre o corpo das mulheres. Diversas práticas de limpeza social e de genocídio passaram pela esterilização de mulheres ou pelo estupro como uma forma de “purificação” da raça. Ou seja, ser mãe, para certos contextos sociais, só é lindo se você for a mãe certa do filho certo. Nada de clichê do amor incondicional, do sagrado direito a geração de uma vida: uma mãe indígena, uma mãe pobre, uma mãe negra, uma mãe lésbica, uma mãe prostituta… são mães menores, com amores menores, com direitos menores.
O que me irrita dos clichês do “amor incondicional de mãe” é que muitas das mesmas pessoas que professam a maternidade como função legitimadora da mulher, defendem, por exemplo, o fim do auxílio maternidade, ou clamam a possibilidade de demitir uma funcionária se esta engravidar. Ou seja, o direito pleno à maternidade seria apenas o das belas, recatadas e do lar, sustentadas por seus maridos bem sucedidos, na família nuclear branca e heteronormativa.
Há culpa e dúvida sim em milhares de mulheres que sentem medo de ter filhos e não poderem arcar com as consequências de tê-los. Que percebem claramente a forma como a sociedade te julga, te diminui e te abandona no exercício de ser mãe: quantas amigas que fazem malabarismos imensos para arcar com as consequências de criar os filhos de uma forma que acreditam e estarem aí no mundo do trabalho sendo exigidas de igual para igual com pessoas que não têm a metade da carga de trabalho que a maternidade traz. Quantas mulheres que são constantemente julgadas por não serem mais tão “bonitas” depois da maternidade, por não terem construído carreiras “bem sucedidas” por causa da maternidade, por não conseguirem se manter “interessantes” ou “equilibradas” para arcar com um novo relacionamento mesmo que o mundo esteja caindo sobre suas cabeças. Quantas vezes, nos olhares mortificados no restaurante quando a criança faz um escândalo e a mãe nervosa precisa que ela coma logo para ir trabalhar há um julgamento implícito de “se não podia dar conta, porque teve filhos?”.
Isso sem falar no modo como esses critérios e julgamentos não recaem absolutamente nos pais. Estes são seres a parte no mundo, estranhamente desculpados da tarefa de nutrir e cuidar diariamente das novas vidas neste planeta. Ou ainda, vistos com desconfiança como não capazes de cuidar das crianças apenas por serem homens. Que bom que isto lentamente está mudando. Mas a passos muito pequenos, é evidente. Cazuza ingenuamente canta: “só as mães são felizes”. A experiência do amor e da alegria de criar filhos (não necessariamente só gera-los) com certeza deve ser tão transformadora a ponto de mudar tudo. Eu talvez não viva isto, mas este fato não me faz menos capaz de ter empatia e me sentir responsável pelas questões da maternidade, pois sou filha e convivo com muitas mães, pais e crianças (em uma sociedade que insiste em não se relacionar com a infância).
Não ter ou ter filhos não torna ninguém mais ou menos humana, mais ou menos mulher, mais ou menos potente. Ok, repito: não ter ou ter filhos não torna ninguém mais ou menos humana, mais ou menos mulher, mais ou menos potente. Repito para mim mesma… até virar mantra. Pois minha racionalidade civilizada entende, mas a realidade do mundo, meus preconceitos, minhas heranças culturais, meus desejos, meus medos e minhas contradições se debatem caoticamente dentro de mim acima de qualquer verdade perfeitamente arquitetada na escrita desta tela. Não existe resposta, não existe uma única forma correta. Existe a vida.