A minha carne negra
Estamos sobre a atmosfera da campanha dos 16 dias de ativismo, contra a violência de mulheres. Embora marcos como a lei Maria da Penha/2006, lei do Feminicídio/2015, Casa da Mulher, sejam importantes conquistas das lutas feministas no Brasil, as estatísticas e a própria esfera política que vivemos nos apontam para dias sem tréguas, pois o país e o mundo avançam dentro de uma perspectiva populista reacionária.
Deste modo, se o mundo parece viver uma pausa democrática também o politicamente correto parece estar em suspenso, em contextos em que os sujeitos têm permissão para exprimir e manifestar sentimentos racistas, sexistas e homofóbicos. Para tanto, para não nos enredarmos em climas de descrença e niilismo, é importante lembrarmos que somente as classes populares e os excluídos concebem a exigência de reivindicar direitos e criar novos direitos (Marilena Chauí), portanto nossa luta não tem ponto final, já que trata-se de forças antagônicas sem direito a conciliação.
Desta forma, é seguro dizer que em sociedades profundamente Racistas/Sexistas, apontar para violências (em campanhas que hoje fazem parte de políticas públicas) significa pensar na pluralidade desses corpos e se a violência sexista é um marco na vida de nossas meninas, adolescentes e mulheres, alguns corpos ao sofrer a reprodução de hierarquias e desigualdades sociais nos evidenciam realidades ainda mais densas, ao olharmos para o mapa da violência dos últimos 10 anos 2.875 mulheres negras foram mortas no país, um aumento de 54% de homicídios frente a uma diminuição de 10% das mulheres brancas entre 2003 e 2013.
Compartilho da campanha latino-americana “Ni una a menos”, pois enquanto a sociedade machista sentir-se livre para o feminicídio não há motivos para comemoração, porém a pergunta que nos toca a todas nesse momento é: Por que a violência sobre nossas mulheres negras não sofreu a mesma diminuição do grupo de mulheres brancas? Ao ler este ensaio, percebemos que pensar tão somente no traço cultural do patriarcalismo que a priori otorga essas mortes, mais uma vez não nos é suficiente, frente o perfil de mulheres assassinadas – dezoito anos, mulher e negra.
Em diálogo com a Kaionara dos Santos, presidenta da Unegro (União de Negros pela Igualdade) de Santa Catarina e assistente social evidencia: “A mulher negra quando jovem sofre violência, ao vivenciar preconceito e discriminação racial, seus maiores agressores são pessoas do seu convívio, o primeiro alvo é o cabelo e sua aparência física, estereotipando sua personalidade, violando sua personalidade que de alguma forma se limita para não passar por constrangimentos. Isso é violência psicológica. No decorrer da sua vida a mulher negra sofrerá as mais variadas violências. Vítima das desigualdades sociais ocupamos os piores índices nas pesquisas, sendo assim nos últimos anos somos beneficiarias dos programas inclusivos de políticas públicas. Este processo de exclusão ainda advindo da discriminação racial e de gênero são eixos norteadores para explicar o tamanho dessa desigualdade”. Ao mesmo tempo frente a seletividade de corpos, a vida das mulheres negras e em especial a morte delas, demonstra causar menos impacto em nossa sociedade.
Quando falamos do cotidiano destas mulheres e dos ciclos de violência, para além destes corpos que hoje já não podem narrar suas histórias e suas tentativas de sobrevivência, é urgente, termos ouvidos para aquelas que ainda estão entre nós e que denunciam cotidianamente os esforços para resistir a violência e a invisibilidade de uma sociedade que tem a Raça e a mobilidade de acesso a direitos ou negação dos mesmos como eixo estruturante, do qual controla status, prestígio e poder. Ocupar os piores índices de qualidade de vida como bem assinalou Kaionara dos Santos, nada tem a ver com causualidades ou categorias alheias às lutas dos feminismos e da campanha dos 16 dias de ativismo, negar a humanidade a história/ cultura, quando não a religiosidade dessas mulheres, conferem violências psicológicas que as afetam desde crianças, porém as mulheres não negras ainda percebem o racismo como algo menos importante ou não tão grave, parecem não acreditar na campanha dos movimentos negros e do Sistema único de Saúde “O racismo mata”, não estão dispostas a discutir os seus privilégios como mulheres brancas e tampouco seu lugar no curso das opressões contras as mulheres negras, aquelas que tendem a ser empregadoras “a patroa”, e que se recusa a assinar a carteira de trabalho.
Seria extremamente produtivo um ciclo de debates e discussões frente às violências de gênero em que todos estes elementos pudessem ser amplamente discutidos em especial a incapacidade de desenvolver políticas para o enfrentamento do feminicídio e violências vividas pelas mulheres negras sem a compressão do peso da Raça/Gênero em seu cotidiano. Igualmente demonstraria uma mudança no modo de olhar para as diversas violências enfrentadas por mulheres brancas e não brancas, considerando que a transformação do capital cultural e de direitos humanos é um passo fundamental na capacidade de transformar nossa sociedade.