Maternidades em tempos de pandemia: quando foi que renunciamos às nossas existências?
O texto de Ana Carolina Coelho é um convite para repensarmos nossas próprias experiências de maternidade. Refletirmos como a sociedade ocidental “vende” constantemente a ideia de que não somos boas o bastante (e continuaremos não sendo para muitas pessoas). Fazemos nosso melhor e nos propormos a continuar a existir, a viver, a ser feliz, para além do fato de sermos mães e termos o cuidado e a responsabilidade (quase que exclusiva) sobre as nossas costas. Como esse amor materno quase sublime, quase santificado, pode ser questionado? Sim, podemos questionar e continuar vivendo como pessoas que somos, com nossos quereres, nossos desejos, nossas defeitos e virtudes, e vivermos uma vida feminista, para além da maternidade.
Os sentidos e os sentir(es) de narrar as maternidades
Texto de Ana Carolina Coelho.
Às vezes
“Você não sabe de nada” e eu acreditei. Eles falavam com tanta certeza e eu me sentia despida de mim
Eles não tinham roupas que coubessem na minha carne exposta.
Inexistia escape ou narrativa para as mágoas das estradas que eu vivia.
Eu não sabia mesmo.
Não sabia como a noite podia ser tão escura,
Não sabia o que é cansaço,
Não sabia dizer não,
Havia dor e solidão e entrega,
Não havia eu.
Não sabia.
Não sabia por que ninguém me perguntava
Todos à minha volta só falavam de bençãos e alegrias
E eu, consumida pelas minhas próprias entranhas.
Sentia muito e não sabia.
Eu não sabia qual era o problema. Eu respondia “nada” e seguia e ninguém me dizia também.
Não sabia porque a vida é tumulto e nesse barulho eu sigo calada e vocês falam tão bem. E eu acredito.
“Você não sabe de nada” diziam eles, e na carne as tintas escorrem,
E minhas marcas de luta sumiam.
Eu não sabia mesmo.
Sonho é coisa do dia e eu não sabia. Mesmo. Porque de dia eu estava ocupada demais não existindo e nada sobrava de mim. (Goiânia, meados de 2015)
Um hiato separa as duas mulheres, autoras tanto da poesia acima quanto desse pequeno ensaio pessoal. A primeira é essa mulher da poesia acima: ferida, solitária e angustiada. A segunda sou eu hoje. Somos a mesma. E somos muito diferentes: há uma travessia de distância entre nós.
A experiência da maternidade foi, como muitas mulheres hoje dizem, um imenso divisor de águas na minha vida. Eu não me tornei “mãe” no dia que minha filha nasceu. Eu queria tanto que isso fosse uma verdade e não um imenso romantismo que escamoteia um processo doloroso: o que fazer quando você deixa de ser uma pessoa que cuida de si e passa a ser a pessoa responsável pelo cuidado da “família”?
Porque, veja bem, a maternagem deveria envolver apenas o cuidado, já avassalador, da mãe e de sua cria. No entanto, a “mãe” é uma entidade. É aquela que cuida e provê a TUDO e TODOS.
Quando foi que eu assinei esse termo de responsabilidade? Quando foi que eu renunciei à minha existência? Cuidar do outro é um grande renunciar de si, há uma imensa demanda de esforço e gasto de energia. E cuidar é cíclico: todo dia há que alimentar, banhar, lavar, arrumar, limpar, “carinhar”.
Cuidar é educar e, por isso mesmo, processo que leva tempo e exige repetição. Eu não sabia o quanto a maternidade poderia ser solitária, dura e difícil. Eu realmente não sabia. Eu falarei disso porque essa é a minha experiência. E eu, sinceramente achava que poderíamos tentar nomear nossas dores e nossas exaustões e as pessoas ao nosso redor iriam entender, se sensibilizar e imediatamente tentar equalizar a realidade. Eu desconsiderei por completo, logo eu, mulher feminista, a força das amarras estruturais heteropatriarcais. Essa força cria uma barreira invisível entre nossa fala – quando conseguimos articular algo – e nossas parcerias.
Ouvimos o quanto reclamamos de “barriga cheia”, o quanto nosso cansaço é menor, o quanto somos pequenas em discutir, o quanto somos briguentas e mal humoradas. E nossas dores continuam a nos sufocar, porque acreditamos na ideia que podemos tentar dividir e educar e, em algum momento, seremos ouvidas e levadas à sério.
Duas coisas mudaram radicalmente minha maternidade: entender que esse “educar”, aquele que deveria ser meu parceiro, só drena minhas forças – e eu não tenho tempo ou vontade de “educar” nada que não seja minhas filhas – e entender, definitivamente, que eu estou sozinha e não estou. Existem milhares de outras mulheres com solidões muito semelhantes à minha, com dores diferentes, com angústias, medos e inseguranças. Igualzinho a mim. Eu descobri isso no dia em que, talvez por desespero, talvez por esperança, eu publiquei minha primeira “crônica de mãe” no Facebook. E recebi várias, muitas mensagens mesmo.
As crônicas, que eram minhas, também eram de muitas mulheres. Uma mãe me disse que gostaria de ter lido sobre meus medos antes porque ela achava que só ela sentia aquilo; outra me disse que embora seus filhos já fossem crescidos, minhas crônicas fizeram-na relembrar de anos anteriores repletos de um misto estranho de dor, tristeza e risadas e uma mulher me disse que ninguém tinha dito nada daquilo sobre maternidade com ela e que eram exatamente como ela se sentia. Eu havia ajudado aquela mãe a nomear seus sentimentos.
A não se envergonhar de falar de sua solidão e desse sentimento de culpa e inadequação. Afinal, se nos tornamos mães no dia em que as crianças nasceram porque cometemos TANTOS erros? Por que simplesmente não sabemos exatamente o que fazer com relação a tantas coisas da criação? E, honestamente, a frase “filha/o não vem com manual de instrução” não ajuda em nada. Ajuda trocar, falar e ouvir, mesmo que não sirva para nada naquela situação em específico. Ajuda, principalmente, a entender que estamos todas perdidas, igualmente sem muita noção de que se o caminho que estamos tomando é o “certo” e chegando mesmo a questionar se há um caminho certo a se tomar.
Por isso, as crônicas se tornaram uma fonte de grande alegria para mim: elas não historiam só a minha maternidade e o meu crescimento simultâneo ao das minhas crianças. Elas são narrativas do maternar em toda sua plenitude imperfeita. Eu sou mãe. Uma mãe. Dentre tantas que existem no mundo. E filha/o tem manual sim: aquele que tem as regras da mãe que o cria.
E antes que alguém venha me criticar dizendo as típicas frases “onde ficam os pais nessa?”, “porque você não fala do papel do seu marido já que ele te ajuda tanto?”, eu me adianto e respondo: em primeiro lugar homem não deveria “ajudar” e sim compartir.
E eles não compartilham, eles dão uma ajuda depois de muita fala, conversa e pedido. Depois de tutoriais, desenhos, regras e uma série de reclamações. Então, eles ficam exatamente na barreira invisível de não ouvir nosso cansaço emocional, físico, mental e social. O papel deles é de se auto educarem, de assumirem responsabilidades e desonerar solidão. “Ah! Mas nem todo pai é assim!”. Claro que não são. Como nem todas as mães são assim ou assado. Agora a culpa, a solidão e a exaustão, eles não dividem conosco. Não lhes onera na carne.
São nossas as corpas de uma maternidade despida, exposta, amedrontada e marcada de uma tinta de luta diária que escorre de nós e se apagam no silêncio de um discurso de “alegrias e bençãos” que só nos retiram de nossas existências. Nós, mulheres e mães, temos que criar nossas próprias roupas, espaço e limites. Homens sempre podem existir e isso se chama privilégio. Eu não educo mais ninguém além das minhas filhas, eu só estabeleço parceria: “vem junto” não é um convite, é uma convocação.
Eu continuo ocupada demais sendo cada dia mais eu. Feminista “demais”. Eu escrevo crônicas, eu danço, eu pesquiso, escrevo artigos, planto árvores, oriento e leciono. E quando me dizem das mais variadas formas “você não sabe de nada” e que eu devo ficar quieta, eu respondo com uma gargalhada: eu não sei mesmo! Só sei que sonhar para mim voltou a existir. Eu existo. E sonho são lutas e afetos. Falas, teorias e práticas. Hoje, uma de minhas filhas resumiu exatamente isso dizendo: “a mamãe luta pelo passado e pelo futuro”. Sim, filha, eu faço isso todo dia. E nessa estrada muitas vem junto comigo e eu não estou sozinha. Não mais.
Referências bibliográficas:
AHMED, Sara. Vivir una vida feminista. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2018.
BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1980.
LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
RIBAS, Cristina. Feminismos bastardos: feminismos tardios. São Paulo: Edições N-1, 2019.
* Ana Carolina Eiras Coelho Soares é feminista, mãe, escritora, poeta, dançarina, plantadora de árvores e professora universitária. Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em História-UFG e da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás; coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa de Gênero da Faculdade de História (GEPEG/FH/UFG-CNPq); coordenadora do GT regional de Gênero da ANPUH-GO e membra da APPERJ (Associação profissional de poetas do Estado do Rio de Janeiro). Em parceria com duas mães pesquisadoras (Vanessa Cardoso e Camilla Cidade) coordena o projeto do livro: “Maternidades Plurais: os diferentes relatos, aventuras e oceanos das mães cientistas na pandemia”, em fase final de edição para ser lançado em formato e-book gratuito em parceria com a editora Bindi. O conto sobre culpa materna “À Deriva”, da coletânea “Cinderelas”, editora Sinna 2019, encontra-se disponível na Amazon. Recentemente, “Crônicas de Mãe” ganhou uma parceria perfeita: a Quintal Edições, editora maravilhosamente feminista “demais” e em breve será publicado como livro.