Ilhas invisíveis
Um homem se aproxima de mim no centro de Florianópolis. É morador de rua, não tem quase nenhum dos dentes. Pede que eu compre um kit de higiene pessoal para ele, que está indo com a mulher e a filha para uma espécie de lar que trataria pessoas drogadas, e que, segundo ele relata, teria sido providenciado através de uma ação da Igreja Universal. Queria pasta de dente, sabonete, escova, lâmina de barbear. Não parecia adicto de drogas e muito menos estar drogado. Acho incongruente a história dele, pois sei que lares para adictos de drogas não aceitam crianças. Mas ele enrola a história, de modo que não sei nem se ele compreende muito bem o que me narra.
Há poucos meses moro em pleno coração do centro da capital. Da minha janela, há semanas, venho ouvindo durante a noite o que me parece os sons longínquos de um conflito. Ouço pessoas gritando, correndo, discutindo alto. Ouço a sirene dos carros de polícia. Vejo que a cada dia menos moradores de rua habitam a praça e os arredores dos principais calçadões da cidade. Percebo que o afluente de pessoas em situação de rua vai aumentando, são homens em sua maioria, mas esse afluente passa, como hordas de imigração. Nota-se que são pessoas em situação de rua há pouco, ainda possuem muita energia, gritam, cantam a plenos pulmões, não se escondem. Estes somem também. Depois de alguns dias, depois de algumas discussões acaloradas. Somem. Parecem todos iguais e se substituem uns aos outros, anonimamente.
Há em curso um projeto que visa revitalizar o chamado centro leste da capital. Barzinhos da moda, comidas finas, museus restaurados e prédios sendo reestruturados. Muitas placas de aluga-se. Pouco a pouco o comércio “mais baixo”, os botecos de moradores dos morros da região, os redutos de grupos marginalizados de percussão ou eventos importantes para a cultura de rua da cidade, como a batalha das minas, vão sendo invadidos pela boa e velha gentrificação das cidades. A classe média respira aliviada de ver o centro finalmente se ajeitar – um sonho antigo inclusive meu – de ver a parte histórica preservada e abrigando estabelecimentos culturais que possam fazer as pessoas circularem “sem medo”. Tira-se da frente dos olhos aquilo que machuca: o cara chato pedindo grana todo santo dia, o senhor de idade dormindo no chão, pessoas revirando os sacos de lixo em frente aos prédios.
Mas os moradores de rua, esses estão sendo massacrados. Pergunto ao meu personagem se algo está acontecendo e ele confirma. Fala que a polícia vem armada até de pedaços de paus, e que a ordem é bater mesmo. Estão retirando todos, como quem retira ratos da toca. Para onde vocês vão? – pergunto eu. Para as praias, para o continente – ele responde – prometeram fazer umas casas para a gente lá na Palhoça. Eu sei que é mentira, e pergunto se ele sabe. Ele ri sem dentes, sabe sim.
Parece muito urgente de nossa parte fazer um levante contra a crescente desumanização que estamos vivendo, que com certeza não foi criada, mas está sendo catalisada com uma rapidez estonteante no governo Bolsonaro. Autorização da violência, discussões com pouquíssima profundidade, muito bate boca inócuo, notícias falsas e nenhuma tentativa de revisão. Poucas pessoas dispostas a rever suas práticas pessoais e coletivas, pensar seu lugar na comunidade, na família, no trabalho. Ir a manifestações, postar nas redes sociais, sustentar discursos publicamente tudo isso é importante, porém as ações cotidianas também são eloquentes. Todos queremos que algo mude, mas temos dificuldades de mudar a nossa própria vida.
Nas descrições de grandes tragédias provocadas por governos insanos (guerras, golpes, muros, massacres) o que sempre me assustou mais não foi a capacidade de tais organizações de promoverem o horror e a barbárie. Foi sim, a capacidade de seres humanos que pareciam perfeitamente normais executarem atos cruéis e terríveis contra as pessoas mais próximas: familiares, vizinhos, colegas de trabalho. Nos pogroms que se espalharam no leste europeu e na Rússia no início do século XX, parentes e vizinhos denunciavam famílias judias para ficarem com suas casas ou suas terras. Na Segunda Guerra Mundial um vizinho que tinha uma rixa qualquer ou um apaixonado não correspondido podia ser perfeitamente um delator que levaria alguém direto ao campo de concentração. Nas guerras étnicas (exemplo a guerra da Bósnia), familiares que já tinham questões de disputas ou heranças, ou colegas de trabalho que haviam se sentido aviltados por um motivo qualquer no passado, haviam autorização para empunhar armas e assassinar pessoas da etnia “diferente”.
Quando era pequeno…tanto quanto me lembro…tinha medo de perder meu pai…Os pais eram presos de noite, e desapareciam não se sabe para onde. Assim desapareceu um irmão da minha mãe, Feliks…Músico. Prenderam-no por uma tolice…por uma bagatela…numa loja disse em voz alta à mulher: <<já temos vinte anos de poder soviético, e não há umas calças decentes à venda.>> Agora escrevem que toda a gente estava contra…mas eu digo que o povo apoiava as prisões (ALEKSIEVITCH, Svetlana).
O mesmo relato, contido no livro de Svetlana sobre o fim do regime soviético na Rússia, inclui em sua narrativa:
A palavra jid ouvi-a pela primeira vez nos primeiros dias de guerra…alguns vizinhos nossos começaram a bater à nossa porta e gritar: <<acabou-se jides, vocês estão arrumados. Vão pagar pelo que fizeram a Cristo!>>. Eu era um miúdo soviético. Tinha feito a quinta classe, tinha doze anos. Não conseguia compreender porque eles diziam aquilo (Idem).
Dar armas à população, incentivar discursos de ódio, incitar uns grupos contra os outros, criar um ambiente no qual todos se sentem ameaçados por todos. Isso é o que o governo Bolsonaro está construindo. Pouco a pouco não é da polícia, da milícia ou de “terroristas” que teremos medo: é de um vizinho de casa que anda armado, de um colega invejoso que pode fazer uma denúncia qualquer e custar sua vida. Durante a Segunda Guerra, em Santa Catarina, foi proibido por lei falar as línguas alemão, italiano e japonês. Pessoas que tinham disputas bobas com seus vizinhos ou algum ressentimento por causa de alguma rusga da comunidade denunciavam falsamente umas às outras, que acabavam com algum parente preso, com uma casa depredada, com um negócio indo a falência. Usufruíam da máquina de ódio para curar ressentimentos próprios, sem qualquer sombra de arrependimento.
Não precisa a mão de um inimigo externo e aterrador bater à nossa porta. Pode ser seu parente, seu amigo. Assim como nos crimes sexuais contra mulheres e crianças, que a maior parte dos agressores são pessoas do círculo familiar mais próximo. Uma recusa insistente em encarar a realidade, por parte dos brasileiros e brasileiras, constrói aos poucos o caminho para uma situação limiar. Apenas começamos a fazer as contas com o passado genocida e violento de nossa colonização, com as marcas que perduram até hoje, e já não se aguenta mais falar sobre os “direitos humanos”.
Estaremos preparados? Não apenas para perder pessoas queridas por motivos torpes, como acontece já todos os dias. Mas para ver os amigos próximos incitando a violência, para conviver com pessoas do seu círculo íntimo que atirarão em outras pessoas “para se defender”. Teremos estômago?
Desejo muito que o local para onde será enviado meu personagem de hoje seja acolhedor, mas parte de mim duvida muito que alguém faria algo honesto para preservar a sua vida no país de hoje. Ele é parte daquela camada da população que desaparece rápido, pois já quase não existe, pois é aquela parcela de seres humanos que podem ser “prescindida” em nome do progresso e da limpeza das ruas de nossa cidade. Esse é um daqueles momentos da história em que diremos ao netos “não sabíamos o que faziam com aquelas pessoas, elas simplesmente sumiam, e nós não ligávamos”. E isso terá sido a verdade, seja de qual corrente político-ideológico tomemos parte.