“Pequena coreografia do adeus” é um dos lançamentos literários mais aguardados do ano. Afinal, a obra é o segundo romance da ganhadora do Prêmio de São Paulo de estreia literária, Aline Bei. Desde o título e a capa, o livro traz uma expressão forte, reveladora, que se intensifica à medida que vamos avançando na leitura. A autora segue sendo uma descoberta literária, uma voz potente e extraordinária que promete reverberar enquanto essas histórias ainda tocarem tanto quem os lê.

Desde “O peso do pássaro morto” tivemos contato com uma autora que parece já ter surgido com uma voz própria já muito consolidada e nítida. A obra possui uma escrita que explora formas livres, dá força ao discurso e segue um ritmo narrativo poético, intenso e muito bonito – características que parecem ter se aprofundado ainda mais em “Pequena coreografia do adeus”. Esse segundo romance da autora, publicado no final de abril deste ano, consegue expor com ainda mais clareza o projeto literário da autora.

“Pequena coreografia do adeus” inicia a narrativa com Júlia, ainda menina, olhando para o pai com uma outra mulher que não é a sua mãe. A menina olha de longe, desconfiada e ainda cheia de mágoa – repara em cada detalhe da mulher, em sua beleza diferente daquela da sua mãe. Seus pais são recém separados e, como em muitos casos (para não dizer a maioria), o abandono da mãe pelo pai se estendeu também para a filha. É assim que Júlia se sente, ao menos, e ainda se assusta e se enraivece em perceber as novas distâncias que se instalaram.

Nesse dia, ela age de forma agressiva com a amiga com quem estava brincando na praça. Vamos vendo, então, essa menina tentando elaborar uma mágoa que nem ela sabe nomear ou ao menos entende. E esse processo se estende profundamente a todo o modo como Júlia age, também em outras situações, embora não traduza tão perfeitamente quem ela é: a menina conserva a sensibilidade e um olhar doce mesmo em uma situação em que se sente tão pouco abraçada pela vida.

Júlia não sofre apenas com a falta do pai ou com a perda daquilo que ela considerava que era sua família, mas também por uma expectativa angustiante de como a mãe irá agir.

E no entanto, entre violência e frieza, a mãe dela se fecha para o mundo e parece não enxergar como isso está afetando a filha. A menina sempre está vivendo uma alta tensão a respeito de como a mãe vai agir, e diante disso surge pouco espaço para que se desenvolva um afeto mais espontâneo entre as duas.

Há surpresas, no entanto: a mãe começa a abrir um espaço em sua cama para a filha, e diz como um segredo “ainda bem que tenho você, meu amor”. Esse é o momento no livro em que o amor entre as duas fica mais claro, e também se torna mais evidente o quanto essa rigidez e a aparente indiferença da mãe pode esconder uma mágoa que diz muito mais respeito ao mundo, às organizações familiares e até ao próprio marido do que ao jeito de ser de Júlia.

O livro também é muito genial ao fazer um perfil do “homem livre”, recém separado, que vê nessa suposta liberdade uma oportunidade de comprar novas roupas, ajeitar o cabelo e rapidamente arrumar namoradas novas – mas facilmente se esquece do compromisso de afeto que deveria manter com os próprios filhos, de cultivar um olhar atento e delicado.

E sabemos o quanto é frequente esse quadro de pais separados que são até carinhosos, mas também descuidados e ausentes – e pode mesmo haver ligação forte de afeto assim?

Outro momento digno de destaque, no livro, é quando a diretora da escola chama o trio para uma reunião para conversar sobre o desempenho de Júlia. Ela pensa então sobre a discrepância daquela demanda escolar e a dinâmica concreta que sempre viveu: “nunca foi possível, não na minha casa/ lá somos três solitários/ irreversíveis/ gravemente feridos / da guerra que travamos contra nós”, evidenciando assim essa violência nos detalhes que os separou de tanta coisa, de tantos momentos, até deles mesmos. Como num um ciclo sem fim de culpabilização, de dor e de remorso.

Essa reunião de pais apresenta também um aspecto muito importante do livro. Há uma diretora que desempenha um papel importante na vida de Júlia e que tem, enfim, um claro afeto e cuidado em relação à vida dela. Ela nota as mudanças na vida da menina e sugere que ela passe a frequentar alguma eletiva. A escolhida é o balé.

Sempre me incomodou perceber com que frequência o balé é visto como uma atividade para menininhas quadradas, que seguem a performance de feminilidade à risca, quando o balé pode ser muito mais – como por exemplo uma dança forte, libertadora. E é lindo notar como Júlia – e Aline Bei – percebem isso e conseguem colocar em palavras essa força sedutora que a dança pode ter, de envolver alguém a ponto de causar um forte desprendimento da realidade.

É ainda mais triste, nesse sentido, que Júlia não fique na dança por tanto tempo. Havia uma coreografia, afinal, que seu corpo não conseguia seguir – apesar de Júlia gostar tanto das aulas, se envolver tanto. Parece que até mesmo numa atividade supostamente mais livre há sempre a obrigação de ser bom, o melhor, e o prazer não pode estar apenas em fazer, em tentar, apenas em conquistar e brilhar. Uma pena, principalmente quando vemos que a eletiva estava servindo justamente para o que estava sendo proposto: trazer alegria.

Vemos Júlia amadurecer subitamente, também – essa vida e essas experiências, afinal, parecem acelerar o processo sem muita culpa, apenas com pressa e sem olhar pra trás. Ela deixa sua mãe, trabalha em um café e vai seguindo a vida sem ditar muito bem seus próximos passos, até que percebe, a respeito de si mesma, o que já podíamos vir intuindo pelo próprio fato de que ela sempre manteve a escrita de um diário. Ela quer ser escritora.

Vemos os trechos em que ela escreve, fictícios e aparentemente distantes de si, e também percebemos, entre as linhas, a história que ela realmente quer contar e que está ali, que está sendo vivida por ela.

A narrativa está na história, lá no mais íntimo, onde talvez ela nem saiba ainda que pode um dia chegar – e é aí que a história nos surpreende e nos envolve tanto, nesse misto de ingenuidade, força e timidez.

Nos infiltramos assim na vida de uma menina se descobrindo, nascendo enquanto mulher, tentando ainda saber quem realmente é – e não descobrindo, pois não há resposta, há apenas mais perguntas que surgem e que vão tecendo o que gostamos, quem queremos ser, o que pretendemos fazer no dia seguinte.

É com ainda mais delicadeza que a narrativa vai seguindo e se finalizando, de maneira despretensiosa e deslumbrante, acirrando ainda mais os olhares que tanto faltaram nas relações entre os integrantes daquela família, expondo as consequências e as separações reais que os envolveram. Júlia, afinal, carrega consigo um dos quatro elementos, e parece verbalizar em sua vida a presença de uma falta de intimidade avassaladora, que vira uma coragem singular para descobrir o que é vida, quem ela é e o que ainda espera dos afetos que podem surgir.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Elisabetta Mazocoli

    Elisabetta Mazocoli é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisa tensões e confluê...

Últimas