Não espero nada dos homens da minha vida, além de amor, compreensão, um abraço nos dias difíceis ou uma boa conversa enquanto se limpa os canteiros das plantas de meu apartamento (e nos perguntamos coisas banais, como os motivos da morte das salsinhas).  Não preciso de ajuda para trocar a lâmpada. Não preciso ser protegida. Não preciso de dinheiro. Preciso de longas conversas com meu pai, de proximidade com meu irmão, de afeto dos amigos, da brincadeira com meu sobrinho, da cumplicidade de um namorado. Mas ano a ano, enquanto envelheço, observo como muitas das relações com os homens da minha vida foram estragadas, corrompidas ou caladas por causa do machismo. Que impossibilidades de conexão, rupturas e abandonos afetivos aconteceram por causa desse ciclo de violência. Uma violência que abrange a todxs nós. Uma violência confusa, muitas vezes sutil, quase sempre escamoteada em amor.

Amar também cala, também mutila, também mata. O machismo não é uma doença, e muito menos contamina apenas os homens. Conheço muitas mulheres machistas. Conheço homens que já sofreram violência doméstica e que tiveram vergonha de admitir ou procurar ajuda, porque o machismo institui esse lugar de humilhação e culpabilização da vítima. Inclusive é o machismo que impede as denúncias: no caso das mulheres, apanhar do marido, ser coagida, ser ameaçada é normal, coisas que fazem parte da relação. No caso do homem, o ato de denunciar ameaça o conceito social de virilidade, é assumir publicamente um lugar inferior, o lugar do perdedor que apanha de mulher.

Nunca vi um homem que tenha sido morto ou violado por conta do feminismo (isso não inclui alguns bate bocas no bar, alguém te xingando por ter dado uma cantada idiota ou uma conversa atravessada em casa): a violência do machismo culmina em morte, em violação, em mutilação, então nem comecemos a contar as casquinhas de machucados para competir quem sofre mais. As violências dos feminismos têm ocorrido, mas como uma reação, como um efeito rebote: depois de séculos de silêncio, levanta-se pela primeira vez uma mão, uma voz que reage. A reação pode vir confusa, com uma mão pesada e dolorida, e aviso desde já, também teremos que passar por isso juntxs.

Vejo diariamente todos vocês, homens que passam pelo meu dia a dia, sofrerem alguma violência por conta do machismo: homens ameaçados pelas ex-companheiras com extorsão de dinheiro ou privação de verem xs próprios filhxs, porque tiveram histórias de amor com mulheres machistas que acreditam que pai não participa da criação das crianças e que só serve para pagar as contas e calar a boca; homens que não podem assumir sua homossexualidade em casa, no trabalho ou na vida em geral porque ser “afeminado” é ser menor, é valer menos, é autorizar uma série de violências físicas e sociais contra você; homens que se sentem inferiores as suas companheiras que ganham mais dinheiro, estudaram mais, são mais populares na vida pública, porque foram ensinados que deveriam sustentar atitudes e padrões de dominação típicos de uma lógica que obriga o homem a cumprir um papel de superioridade no casal (e que a maioria de vocês não está nem interessado em sustentar tal atitude). Porém, por não conseguirem entender esta contradição que sentem entre o que foi ensinado e as situações que vivem nos relacionamentos, calam o amor com um orgulho ferido e ressentido por essas mulheres serem muito livres, muito frias, muito putas, muito loucas, muito combativas, muito confusas.

Por favor, afastem-se de homens ou mulheres que medem seu valor pelo carro que você anda, pela roupa que você veste, pelo tamanho do seu pinto ou pela liquidez da sua conta bancária. Tornar o outro um objeto de satisfação dos seus próprios desejos é uma lógica patriarcal: o machismo objetifica x outrx, tira tudo o que leva em consideração a humanidade, os afetos, os desejos e a individualidade de uma pessoa. Transforma pessoas em objetos que servem ao prazer de outrem. Fico particularmente louca quando vejo mulheres mal informadas sustentando que o feminismo é uma autorização para apenas inverter uma lógica machista: como se os feminismos fossem uma vingança, uma espécie de “dar o troco” em que vamos agora excluir os homens da discussão, infligir em vocês tudo aquilo que sofremos. Isso, para mim, está errado. Acho violento mulheres comentando o tamanho do pinto do cara na mesa do bar, acho violento mulheres que fazem piada com brochadas e “falta” de virilidade, acho violento mulheres criticarem o cara de inferior porque ele não ganha dinheiro, porque chora vendo filme, porque não pagou a conta do restaurante. São comportamentos que apenas perpetuam uma lógica machista, e não oportunizam para que exista outro olhar sobre nossas relações afetivas.

Os feminismos tentam, na verdade, entender as raízes dessas violências e fazer os indivíduos tomarem consciência de que comportamentos e atitudes que por muito tempo foram consideradas “naturais” (ex.: mulher cuida dos filhos, homem sustenta a casa) são apenas construções sociais, culturais, políticas e econômicas. A tarefa de romper os padrões de violência, então, é de todxs. E os benefícios vindos dessa ruptura, serão também de todxs. Não é uma lógica de vencidos e vencedores. Não se trata “afeminar” o mundo, apenas invertendo a ordem das coisas. Se fosse isso seria fácil… o difícil é encontrar esse outro modelo, menos opressivo, menos hierárquico, menos bélico.

Uma coisa que vocês deveriam entender é que as nossas gerações (e infelizmente algumas ainda que estão por vir) são frutos da violência de gênero. Se você começar a vasculhar, a abrir a caixa de Pandora, esteja preparado para ver o que está ali. Quantos meninos tiveram que virar “homens” de uma hora para outra, abandonar os carrinhos para trabalhar e engolir o choro (porque um homem não chora). Quantos meninos foram ensinados que não podem falar sobre os próprios sentimentos, estabelecer relações afetivas de amizade ou de carinho com outros meninos com medo de se “tornarem” gays, e depois na vida adulta enfrentam uma incapacidade latente de fazer amizades ou estabelecer relações afetivas com quem quer que seja (sentindo-se sozinhos e isolados). Quantos meninos tiveram que sustentar uma iniciação sexual precoce para serem aceitos na turma nos machinhos, mesmo sem ainda entenderem a própria sexualidade e mascararam traumas profundos em “conquistas” sexuais. Quantos meninos foram ensinados que a sua realização como homens seria ter dinheiro, ser bem sucedido, e que, quando chegaram aos trinta ou quarenta anos e simplesmente não puderam ou quiseram seguir este caminho na sociedade, são apenas julgados como fracassados.

Por favor, se há algo que você pode aprender quando tem uma irmã, filha, tia, namorada, amiga feminista, é que há sim uma busca de liberdade intrínseca em todxs nós – e essa busca na maioria das vezes envolve luta. Que muitas mulheres ao seu redor estão procurando sair dessa lógica não apenas por um capricho teórico-estético, mas sim por pura tática de sobrevivência. Compreender sua própria história, a partir da ótica do quê o machismo provoca em nossa formação, significa enxergar uma série de vivências de nossas vidas que nos foram impostas como “normais” com a sua devida lente: a lente das violências humanas mascaradas em atitudes de amor, de cuidado, de proteção, de sucesso, de educação, de moralidade, de decência. A luta pelas mulheres para entender sua própria condição é um convite para que vocês também entrem nesse processo de auto-avaliação, confrontando seus próprios fantasmas.

Sou rodeada de homens fortes e doces, cheios de dúvidas e contradições, que já me machucaram e já me ajudaram. Homens que amo, homens contra os quais não tenho a mínima intenção de entrar em guerra. Homens que, inclusive, me fizeram ser quem eu sou. O pacto pela não violência contra a mulher, é na verdade um pacto pela não violência contra todxs. Não negue que o machismo mata, só porque não consegue ver essa condição em seu cotidiano: as estatísticas são alarmantes, e a violência de gênero no país é uma epidemia que custa muitas vidas. Já deve ter custado ou pode vir a custar a vida de uma mulher muito próxima e amada por você, que um dia é estuprada ou morta por algum homem que se sentiu autorizado a violentar alguém por andar na rua de noite, por beijar outra menina, por querer terminar um relacionamento.

Esse homem não é um hipotético espírito malévolo, vestido com uma capa preta e saído de um arbusto no meio da noite: são médicos, advogados, patrões, professores universitários, brancos e negros, pobres e ricos, estudados e ignorantes. Aquele seu amigo que mostra as fotos dos peitos da menina que tirou quando ela dormia, o seu tio que comenta o quanto a fulaninha cresceu e está apetitosa, o seu pai que achou normal impedir sua mãe de continuar a estudar assim que se casaram.

Parece um exagero, não é mesmo? Eu sei, não é fácil se descobrir violentx. Assim como não é fácil descobrir que muitos comportamentos que você foi ensinada como “normais” durante toda a sua vida são, na verdade, uma violência contra o seu corpo e os seus direitos civis (ir e vir, trabalhar, estudar, etc). Então pense que todxs os lados da equação estão fazendo as contas com alguma forma de violência. Estamos todxs perdidxs nesses novos modos de organizar o mundo, tentando fazer as contas com um passado pesadíssimo e vislumbrando um futuro ainda obscuro.

Eu poderia ter endereçado esta carta a estranhos, a qualquer um. Mas com desconhecidos não teria a paciência necessária para explicar tanto. Não estaria envolvido o afeto, que me faz querer enxergar o humano que há em todxs nós. Passo a passo, juntxs, poderemos construir um mundo com lentes mais realistas, mais críticas, e por isso mesmo, mais amorosas. Não estamos fazendo isso apenas por nós, mas pelxs nossxs filhxs, sobrinhxs, netxs, alunxs…essas crianças que merecem crescer sem as violências que crescemos, que poderão se reinventar encontrando novas liberdades, e por consequência, novos problemas. Mas ao menos, serão novos problemas.

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  • Barbara Biscaro

    Barbara Biscaro é atriz/cantora e pesquisadora nas áreas do teatro e da música. É Doutora em Teatro pela UDESC e coorden...

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