As sombras de meninas e meninos
Há poucas semanas um espetáculo catarinense chamado A Menina e sua Sombra de Menino foi censurado na cidade de Campos Novos/SC. A reação veio de membros da comunidade, que apenas ao lerem a sinopse do trabalho, reagiram violentamente por julgarem se tratar de um espetáculo teatral que abordava a tão temida “ideologia de gênero” que organizações, políticos e pessoas têm tentado banir das escolas a partir da ascensão de projetos como Escola sem Partido. Ninguém havia visto o espetáculo, ninguém havia lido mais do que a sinopse do projeto, que elucidava que a peça trata de uma menina que gosta de brincar de brincadeiras ditas “de menino”, tais como jogas bola ou carrinhos. Só isso.
A reação foi muito violenta. Os artistas receberam nas redes sociais comentários agressivos, acusações e ameaças, e em face disso, não insistiram para que houvesse a apresentação. Este poderia ser apenas mais um imbróglio típico de uma cidade do interior, com suas carolices e mentalidades tacanhas. Esse poderia ser apenas um grande mal entendido, no qual o velho “quem conta um conto aumenta um ponto” fez valer sua fama. Mas não é. É um retrato triste e cruel de nossos tempos, nos quais discursos de ódio e uma falta de informação generalizada autorizam pessoas completamente despreparadas a protagonizarem episódios como esse. Aquela imagem dos desenhos animados, extremamente preconceituosa diga-se de passagem, se formou aqui neste caso: a dos moradores de uma cidade pequena, cegos em face de uma ameaça externa saem com suas foices, cajados e tochas correndo atrás do “perigo” que quer derrubar a moral e os bons costumes e corromper suas criancinhas indefesas.
Vale ressaltar que nenhum dos adultos que reagiram virulentamente contra a peça era pai ou mãe de qualquer criança da escola na qual a peça seria apresentada: eram membros de uma comunidade religiosa que esperavam “salvar” as crianças de um hipotético mal ou mais provavelmente, criar um acontecimento para propagar na internet e na cidade seus ideais de moralidade e família através do ódio. A boa e velha mídia espontânea, em outros termos.
O primeiro ponto a se examinar aqui é o medo de mudanças. Porque sim, o conteúdo da peça é extremamente revolucionário: destituir a polarização “coisa de menino” e “coisa de menina” tem sido um esforço de muitas mães e pais ao meu redor que compreendem que uma criança deve ter o direito de experimentar todas as brincadeiras, roupas, atividades sociais e entretenimento sem rótulos. Enjaular meninas e meninos em papéis pré-definidos já desde o azul e rosa das roupinhas é uma discussão sim nascida e alimentada com pesquisas, dados, textos e debates de pessoas que estudam gênero, mas também sociologia, antropologia, arte, etc. Isso vem mudando aos poucos: eu, que tenho 34 anos, estudei em uma escola que tinha a matéria PPT (preparação para o trabalho). Nós, as meninas, tínhamos uma professora que nos ensinava a cozinhar, colocar uma mesa bonita, fazer um caderno de receitas caprichado. Os meninos tinham uma outra professora, que ensinava xilogravura, pintura, escultura. Isso parecia extremamente natural a todos da escola, desde a coordenação até a nós mesmas: que meninas e meninos tivessem acesso a tipos diferenciados de informação de acordo com nosso papel de gênero. Isso pode parecer uma aberração nos dias de hoje, certo? Errado. As pessoas que reagiram contra a peça em Campos Novos talvez pensem que esse é o correto, e desejam retornar a essa polarização das normas “corretas” de meninos e meninas.
O que é literalmente engraçado é a imagem que se criou que discussões como essa (se meninos não têm o direito de aprender a cozinhar ou colocar a mesa) são discussões que irão incentivar a sexualização das crianças. Que elas, ao terem contato com esses pontos de vista, serão todas lésbicas, gays, feminazis e comunistas. Eu aprendi PPT (sei colocar a mesa direitinho), beijei meninas e me tornei feminista. Não há como controlar o que crianças se tornarão no futuro. Mas há como ampliar debates e discussões que podem evitar muito sofrimento para as famílias, que ainda operam baseadas na repressão e em uma moralidade tóxica, baseadas em boatos e não em informações. Afinal, a peça está falando apenas do direito que as crianças podem ter de brincar sem ter pais, mães, professores e professoras, padres e pastores cuidando para saber se estão indo no “caminho certo”. Porque ainda temos muito arraigado em nossa sociedade que se um menino brinca de bonecas ele é gay, e não porque ele está brincando de ser um pai amoroso, uma pessoa que cuida dos outros. Se uma menina brinca de bola e não sabe se “comportar” como menina é porque é uma puta, pois brinca com os meninos e não se dá ao respeito. A criança só brinca. Quem julga e rotula é o olhar e o pensamento do adulto. Logo, quem está doente são os adultos, e não as crianças.
Estamos prestes a dar um passo em nosso país que assusta a todos e todas. Estamos assustados, obviamente, por diferentes motivos. Mas o que nos une é a sombra que paira sobre todos nós do medo. A impossibilidade de discutirmos, de encararmos as realidades que nos cercam, de nos abrirmos para novos pontos de vista está engolindo a humanidade que mora em nós. Vivemos um tempo que tem sido importante “estar certo”, mesmo que isso signifique defender o indefensável. Esses homens e mulheres que se esforçaram para evitar que a peça ocorresse em Campos Novos, assim como todas as pessoas que sem qualquer conhecimento de causa querem banir a “ideologia de gênero” das famílias e das escolas, são meninos e meninas assustadas, que preferem viver no escuro de suas sombras do que enfrentar os dados sobre violência de gênero. São pessoas que não querem levantar este grande tapete que disfarça toda podridão de assassinatos, surras, silenciamentos, proibições e autoritarismo que a violência de gênero provoca no interior e na capital.
Porque não é fácil encarar nossas feridas, reviver as marcas, questionar o inquestionável. Porque deixar os outros serem livres significa se libertar também, e nem todos estamos dispostos a deixar as amarras e encarar nossas próprias sombras. Usar do mecanismo da censura, coisa que tem infelizmente se tornado corriqueira em nosso país no campo das artes, é a forma mais covarde de não debater as ideias, de não encarar a realidade. O que mais me assusta, particularmente, é que a censura não tem vindo do governo, das autoridades, dos órgãos reguladores (o ministério público, a secretaria de educação assistiram ao espetáculo depois e atestaram a integridade da peça), mas sim, de pessoas “normais”, como minha avó, meu vizinho, o tio da minha amiga, que prontos para defenderem seu ponto de vista, se demonstram capazes de censurar, delatar, ameaçar e agredir. Adultos que mergulhados na sombra do medo são capazes de violência, e que passam seus dias defendendo “a sombra das meninas” de uma peça de teatro.