Um microfone aberto. Uma roda de debate. Uma encruzilhada nos calçadões do centro da ilha. Uma
pergunta simples: o que muda uma discussão se as pessoas envolvidas nela estão nuas? Quais os
territórios que adentramos quando a nudez do corpo se interpõe entre aquele que fala e aquele que escuta?
Quais ecos ganham as palavras de um discurso se ele parte da boca de um cidadão nu? Essas foram (a
partir do meu ponto de escuta) as perguntas propostas na performance 24º Debate Púbico / Desnudo
Ágora do Erro Grupo, em uma sexta-feira de julho de 2019, acontecimento inserido no projeto de
residências artísticas encabeçado pela equipe do Memorial Meyer Filho.

Primeira nudez: o medo dos flagelos do corpo

O século XX inventou um novo corpo humano. O corpo humano do século passado foi forjado nas lutas
armadas com tecnologias como a granada, a metralhadora, o napalm, a radiação de Tchernobil.
Aprendemos que somos muito eficazes na invenção de novos dispositivos que desmontam o corpo em
pedaços. Quais os corpos despedaçados? Os corpos sem voz. Os corpos pretos, indígenas, imigrantes,
femininos, transgêneros, infantis, os corpos velhos demais para trabalharem, os jovens demais para se
rebelarem. O corpo da mulher nua, campo de batalhas: corpo-objeto, os corpos de mulheres são
violáveis, são corpos que, quando nus, não “se dão ao respeito”.

No debate desta sexta-feira, o medo de mostrar os corpos era o medo da repressão da polícia. Exagero?
Em determinado momento da ação, quatro viaturas da guarda municipal se encontravam ao redor da roda
de debates, uma em cada rua da encruzilhada. Um cerco. Imagem eloquente: imagem daqueles que não
têm saída. A saída era desnudar-se, mas havia medo. Se todos nos desnudássemos juntos, estaríamos
menos suscetíveis a violência? A presença da polícia ali era muda, mas gritava em nossos ouvidos. Essa
podia ser uma estratégia: muitas e muitas pessoas nuas, desestabilizando o equilíbrio entre vestidos e nus
no centro da ilha aterrada.

Mas retirar a própria roupa em público é um processo delicado: é retirar tudo aquilo que nos esconde, que
nos protege, que nos identifica, que nos recobre, que nos abriga, que nos torna iguais a todos os outros
passantes do centro da cidade. Engraçado que o que nos unia ao mundo ao redor era o fato de estarmos
vestidos, e não que todos possuíamos corpos extremamente parecidos em essência: pé, mão, bunda,
barriga, joelho, peito. O corpo nu, na cidade, choca literalmente: choca-se contra o olhar vestido das
pessoas, que teimam em esquecer que o corpo re-existe por debaixo das roupas.

Segunda nudez: corpos nus em espaços públicos

Uma grande hipocrisia. O mendigo que dorme na rua choca menos. A mãe preta na porta do
supermercado, tendo que voltar a pedir comida aos passantes, choca menos. Um homem idoso virando
lixo para comer choca menos. O cara de vinte anos que caminha sendo homem-placa no calçadão para
poder sobreviver não choca nada. O industrial que dá um tiro na cabeça na frente do ministro, é irrisório.

O reitor que se suicida no shopping não tendo nenhuma acusação consistente contra si, é uma fatalidade.
Esses corpos também estão nus: são os corpos que tiveram sua dignidade roubada. Sim, porque um senhor
passa e fala ao microfone: não é possível estar nu no debate, pois despidos perdemos nossas dignidades.

Não ter acesso a saúde, educação, aposentadoria, trabalho, descanso e cultura é normal. Encher o alimento
com veneno agrotóxico e vender as reservas de água é desenvolvimento. Quatro viaturas da guarda
municipal para um debate público é segurança. Institucionalizar um discurso de violência é necessário.

Indigno e anormal é estar nu.

Terceira nudez: corpos descartáveis

Giorgio Agamben, filósofo italiano do século XX, nos apresenta o conceito do homo sacer. Para
exemplificar quem seria este homem descartável, o homo sacer, ele dá o exemplo dos presos de Auschwitz
(famoso campo de concentração produzido pelo nazismo alemão). Corpos que, para o regime fascista,
eram destituídos de humanidade, e por conseguinte, possíveis de serem eliminados sem prejuízo à
sociedade, pessoas as quais ninguém “sentiria falta”. Para Agamben, este dispositivo não trata somente de
matar, mas também de modos de deixar morrer.

“A vida sem valor, a vida nua, enuncia-se desde que o homem soberano tenha o poder sobre a sua própria
vida, desde que o suicida tenha a soberania do homem vivente sobre a sua própria existência”, escreve
Agamben. A metáfora de vida nua, do filósofo, é uma chave interessante para pensar sobre as metáforas
propostas pelo debate do Erro Grupo: a nudez da vida está na sua possibilidade de despir-se de valor. A
extrema desimportância que o indivíduo adquire quando vira somente um corpo nu, mais um corpo na
vala comum, um corpo sem identidade vestida, sem função na sociedade, sem comoção nas redes sociais,
sem hashtag ou estampa de camiseta. A nudez, nesse caso, grita por todos os poros a fragilidade da nossa
extrema insignificância. Não somos nada, vestidos ou despidos, continuamos sendo nada. E se descobrir
tão frágil é muito assustador.

Nesse sentido, as duas mulheres que se despiram em frente a todos no debate me comoveram: pois seus
peitos nus falavam muito mais sobre a minha fragilidade e o meu medo do que sobre a sua força. A nudez
daquelas duas mulheres nasceu por um ato profundo de desespero e um ato profundo de solidariedade: e
nós, os observadores, fomos pegos em nossa própria hipocrisia de nos contentarmos com o papel de
espectadores – aqueles que esperam, e enquanto o fazem, observam os corpos frágeis na nossa frente se
abrirem em feridas. Aplausos para as fortes, as mártires. Quanta bobagem: era injusto enaltecermos
vestidos a coragem daquelas mulheres, quando tudo o que elas precisavam é que nos despíssemos
também.

Eu me senti cínica, impotente, medrosa. Os peitos nus daquelas mulheres me ensinaram sobre a minha
própria incapacidade de agir. Agamben mais uma vez fornece uma chave importante para ler essa
situação: se o suicida é aquele que toma para si a soberania da decisão de sua própria vida, tirar a roupa,
naquela tarde de sexta, era poder decidir sobre a única coisa que é realmente nossa: o próprio corpo.

A mudez

Os silêncios no debate, para mim, gritavam. Eram muito mais reveladores do que as palavras. As
ausências muito mais eloquentes que as presenças. Para mim, ficou óbvio que não haveriam corpos nus,
porque as palavras não estão nuas. Não somos mais donos nem das nossas próprias vozes e pensamentos,
quem dirá de nossos corpos tão frágeis e passíveis de serem machucados.

A nudez virou mudez.

Seria então a palavra nua, a palavra sem valor? Jogada ao vento, numa sexta-feira na ilha dos desterros,
vozes e palavras fadadas ao esquecimento, seguidas de corpos fadados ao desaparecimento.

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  • Barbara Biscaro

    Barbara Biscaro é atriz/cantora e pesquisadora nas áreas do teatro e da música. É Doutora em Teatro pela UDESC e coorden...

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