A lição invertida: sobre um caso exemplar
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
(Clarice Lispector, no conto “Mineirinho”)
Logo na abertura do vídeo, a moça geme e chora pedindo desculpas e ainda diz: “ Me bate”. Depois olha pra câmara como mandam que ela olhe e repete o que lhe dizem pra repetir: “Eu roubei, por isso estou apanhando”. Ela é pequena, negra e está com os pés descalços, complemente acuada numa parede com grades ao fundo. Ela usa uma camiseta rosa e rota. Pra poderem fazer o serviço mais completamente à vontade e sem qualquer barreira, eles exigem aos gritos: “Abaixa a mão!”. Ela leva 49 tapas seguidos na cara, quase sem tentar se proteger ou desviar o rosto. Ela pede desculpas quase incessantemente. Eles ordenam várias vezes: “Sustenta!” Ela aprende a domar a ferro e fogo até mesmo esse instinto básico de autoproteção e mantém as mãos abaixadas quase todo o longo tempo.
Vê-se que a ideia era que ela estivesse ali sendo de alguma forma “educada”. Vê-se que eles gravaram tudo e publicaram o vídeo porque estavam orgulhosos de mostrar pra todos nós uma venerável lição sobre esse caso exemplar.
Isso chega até mim, por um lado, através de gente que está perplexa e ferida a fundo com a cena. Por outro lado, no entanto, isso chega até mim por muita gente que está aplaudindo a ação daqueles que estão sendo chamados de “seguranças justiceiros”.
Pois tento aprender a lição de justiça que esses homens buscaram repassar. Vejamos: parece que ela tentou roubar um saco de arroz num supermercado porque estava com fome e tem filhos pra sustentar. Mas isso, como sabemos, não deve importar e nem ser um entrave para a imensa e exaustiva empreitada de “fazer justiça” ou de “educar essa gente”. Acima dessa pequena situação desesperadora que a moça estava vivendo – lembramos: passar fome e ver os filhos pequenos passando fome – é claro que deve estar a proteção do estoque do supermercado, da margem de lucro dos empresários, da necessidade de se manter um desemprego estrutural pra baratear os custos das contratações. Acima disso, aliás, sempre dever estar o lucro de quem ganha com a miséria alheia: os velhos e novos herdeiros dos imponentes fazendeiros que viviam do trabalho escravo e da tortura desses corpos, os herdeiros dos grandes industriais que vivem de explorar estruturalmente o trabalho alheio, os lucros ainda maiores dos banqueiros que vivem de fazer o dinheiro criar mais dinheiro à custa do endividamento sufocante de quase todos nós. A gente sabe, ora, quem não sabe? Precisamos aprender a nos adaptar a esta roda dentada na qual a fome e a dor das pessoas de carne e osso deve ser vista como só um detalhe a ser ignorado ou uma sujeira a ser varrida pra debaixo do tapete. E sabemos bem que nenhum dos bem nascidos e afortunados há de levar tapas na cara por conta dos imensos saques e roubos de que suas fortunas se alimentaram aos longo de décadas ou séculos. Nenhum deles vai precisar aprender a sequer tentar se defender pra não atrapalhar a humilhação com a qual deveriam ter se acostumado desde sempre. Nenhum nunca precisará dizer: “Eu roubei, por isso estou apanhando”. O que eles fazem, na nossa língua, não tem nomes feios. E não apanham de forma alguma, muito pelo contrário: são aplaudidos pelo muito que tiram de suor e de sangue de tanta gente, e há tanto tempo. Aparentemente, eles não precisam aprender nada de ninguém.
E mesmo na velha escola “sem partido” que tantos têm louvado com caprichosa paixão, aprendemos a sempre exaltar os feitos gloriosos desses campeões em tudo – e ainda seu arrojo, sua irresistível ferocidade, seu senso de empreendedorismo tão visionário. Reparem que as maiores ruas e avenidas tiveram, em geral, os nomes deles. Eles em geral comandaram exércitos contra populações indefesas, sugaram o suor de muitas gerações de muitas famílias, receberam sempre muitas medalhas brilhantes e aplausos públicos. Mas nem isso bastou, vejam só. Sempre ainda foi preciso transformar todos esses feitos numa bela lição que os miseráveis pudessem ao menos repetir. Como os camponeses de Canudos, quando capturados ainda vivos no formidável massacre genocida que inaugurou a nossa República: antes de serem degolados, deveriam gritar “Viva a República!”. Eles também deveriam deixar bem claro que foram completamente derrotados, que não podiam mais se defender de forma alguma, e que enfim estavam prontos pra exaltar a lógica dos vencedores milhares de vezes assassinos. E eles eram tantas vezes crianças e mulheres completamente mudas e aterradas e franzinas; e essas degolas em massa que lhes atravessavam a garganta passaram pra História com o pitoresco e discreto nome de “gravata vermelha”. Vejam só as lições que recebemos. E o mundo brutalmente invertido com o qual se empenharam em nos acostumar.
Não por acaso, portanto, há tanta gente que estranha muito pouco cenas como as da moça sendo agredida num canto do supermercado: eis uma criatura que preenche perfeitamente todos os quesitos relativos a quem deve apanhar em nosso país.
Ela é pequena, veste uma camiseta rosa e rota, está descalça e acuada numa parede de fundos. Ela é apenas uma mulher. E é pobre. É negra. E quase se parece com uma criança. E eles por sua vez são grandes, são homens, são brancos e estão a serviços dos donos das coisas, contando com a complacência geral diante dos próprios feitos. O que eles fazem inclusive lembra o que maridos e namorados fazem com as mulheres que consideram “vadias”, todos sabemos como é isso. O que eles fazem também lembra muito o que certos pais fazem com seus filhos, e partilha da mesma covardia que confunde deliberadamente “educar” com ameaçar e constranger quem é menor do que nós. O que eles fazem confunde educação com obediência humilhada, e tantos de nós também nos confundimos no meio disso. O que eles fazem lembram o que os capatazes fizeram com escravos no meio de praças públicas ao longo de séculos, diante de plateias seletas que se deleitavam com o quadro. Lembram também o que policiais fazem tantas vezes com negros e favelados, em operações de “limpeza” nos morros ou no asfalto. E as lições que tomamos nos transformaram tão frequentemente, afinal, em pouco mais do que capatazes e aspirantes a capatazes. Sim, o que eles fazem é tão familiar pra gente. Não poderíamos mesmo duvidar em nenhum momento da popularidade e mesmo talvez da justeza desse tipo de lição que aprendemos desde tão pequenos, desde quase sempre, vinda de fontes tão abundantes e bem estabelecidas.
Ou poderíamos? Ou deveríamos? E o que faríamos, então, a partir daí?