Entrevista com Cecília Palmeiro, Ni Uma Menos, Buenos Aires – Argentina

.:. Leia a matéria completa: Desobediência ao patriarcado: a rebelião das mulheres latinoamericanas .:.

Como as argentinas estão preparando o 8M?

Na Argentina, estamos nos rebelando contra o patriarcado em todas  suas formas, contra todas as violências machistas. Entendemos que o neoliberalismo de alto impacto produz formas brutais de exploração dos nossos corpos e nossos territórios. O patriarcado, que foi imposto em nossa América a através da colonização e o genocídio, está em íntima relação com o racismo, o capitalismo e o estado-nação. É isso  que o movimento feminista argentino está elaborando, a partir de um processo de assembleias (como também está acontecendo no Brasil e no continente todo) onde todas as lutas estão presentes: as dos povos originários, as dos afrodescendentes, as lutas em defesa da terra, as camponesas, as migrantes, as lutas contra a reforma da previdência, e das reformas laboral e estudantil, as trans e travestis, as lésbicas, as donas de casa, as sindicalistas, os partidos da esquerda revolucionária e do campo nacional e popular (peronismo), as trabalhadoras da economia informal, as trabalhadoras sexuais, as vítimas de violência, as trabalhadoras em conflitos laborais, as moradoras de favelas, as presas, entre outros frentes… Na base de todas as violências, está a violência econômica e financeira. A subalternidade das mulheres no mundo tem a ver com una divisão desigual e injusta da renda e do trabalho. O patriarcado é a condição da existência do capitalismo, como amostra a teórica da economia feminista Silvia Federici, autora do enorme livro Caliban e a bruxa.

Por isso, a nossa luta é necessariamente anticapitalista e estamos contra o governo de Macri, na Argentina, e do Temer, no Brasil e contra a nova fase do neoliberalismo que está arrasando com as nossas vidas e roubando nosso futuro. Contra a violência sexual, os feminicídios e travesticídios, contra o ajuste estadual e as demissões (despidos), contra as reformas da previdência, laboral e educativa, e pelo aborto legal, seguro e gratuito, nós paramos e paramos o pais e o mundo.

Como está a construção da greve?

A greve de mulheres não é uma greve só laboral como a conhecemos tradicionalmente e como foi formulada pelo movimento operário e sindical. O trabalho das mulheres não é só o emprego formal e assalariado. A maioria de nós nem temos carteira de trabalho e somos trabalhadoras domésticas e informais. Por isso falamos que todas as mulheres somos trabalhadoras considerando as tarefas do lar, reprodutivas e de cuidado como trabalho não remunerado nem reconhecido.

Por isso, a nossa greve tem que acontecer nos empregos formais e lugares de trabalho, e é muito importante o apoio das centrais operárias e sindicatos, mas também é uma greve existencial que acontece no corpo e no lar. Cada mulher tem que pensar como pode participar da greve. Nem todas podemos deixar de trabalhar o dia inteiro. Mas temos de achar a forma em para deixarmos de fazer coisas que reproduzam a nossa opressão e a opressão de outras mulheres, temos que poder conectar com outras mulheres. No 8 de março, nós devemos deixar de fazer as coisas que o sistema nos impõe e nos conectar com o nosso desejo e força vital.

A assembleia Ni una menos propõe no dia 8 de março 24 horas de desobediência ao patriarcado. Começando à meia noite com um #orgasmaton: é uma chamada para todas arrumarmos um orgasmo, do jeito que for (e se não conseguirmos chegar, já da para curtir mesmo o intento).

Começamos o dia com una onda orgásmica que percorrerá o mundo mudando a energia da Terra, porque a nossa revolução é sexual e espiritual e sensível. Às 11 horas da manhã faremos #Ruidaço e a partir das 12 horas, abandonamos atividades como e pelo tempo que cada uma puder. Às 5 da tarde nos encontramos na rua para os protestos.

Há expectativa de superar a ampla mobilização do ano passado?

Este ano a greve está muito mais instalada na opinião pública. A luta das mulheres nas ruas, nas casas e nas camas tem conseguido instalar na mídia o debate sobre feminismo e a agenda do aborto legal, seguro e gratuito. No momento na Argentina todo mundo está discutindo o aborto, e até o governo está flertando publicamente com a ideia. O congresso vai debater o projeto de lei (que já foi apresentado umas 6 vezes) no mesmo dia 8 de março.

Na Argentina, a greve está sendo organizada entre todas e desde a classe mais pobre, não é uma questão do mundo do ativismo feminista histórico, mas de milhões de mulheres que até agora não se reconheciam como feministas. A greve se organiza nos subúrbios, nas aldeias, nas favelas, na roça, não só nas grandes cidades.

O internacionalismo da greve está muito estendido e é uma das características mais importantes dessa maré, esse sujeito coletivo que as mulheres do mundo estamos formando e fortalecendo com essas ações globais.

O movimento 8M fez crescer o feminismo na América Latina?

Essa é uma revolução que é fortíssima na América Latina daqui sai contagiando o mundo. No ano passado, todos os países do continente entraram na greve e este ano será maior e mais profunda. Muitos movimentos de mulheres da região temos organizado uma aliança organizativa e comunicativa, La internacional feminista, e convidamos a todas para participar nas redes. O movimento de mulheres está na vanguarda da luta anticapitalista latinoamericana, que é também uma forma de mudar a nossa relação com a Mãe Terra, o que é fundamental no nosso continente que tem as reservas de recursos naturais mais importantes do mundo. A comida, o ar e a água do mundo, ou seja o futuro da humanidade, depende de o que aconteça com nossos territórios. Nem os nossos corpos nem os nossos territórios são objetos de conquista e vamos defendê-los. A nossa é uma luta pela vida no planeta que começa nos nossos corpos.

No ano passado houve forte repressão…

Essa rebelião nem sempre vai ter as mesmas formas. Os governos fascistas podem nos reprimir, mas nem os milicos nem suas armas podem deter a maré espiritual e corporal que está acontecendo. O que nós sentimos e experimentamos não tem volta, porque estamos num outro processo de devir: deixamos de ser as vítimas da história para sermos protagonistas. Desde 2015 nós estamos mutando e mudando a sociedade. Com maiores ou menores ações nas ruas, a nossa transformação subjetiva tem uma força política enorme e ainda nem podemos perceber os seus efeitos. Ninguém pode negar isso que nós sentimos no corpo e na alma quando estamos na maré. Estamos fazendo história, formulando utopias e praticando o mundo onde queremos viver. Neste 8 de março temos um compromisso com o nosso futuro.

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