Um defeito de cor e o poder da literatura para emancipar memórias

Por Kelly Ribeiro

Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, é considerado um dos livros mais importantes da literatura brasileira no século 21. Notável desde o lançamento em 2006, já vendeu mais de 100 mil exemplares.

Aclamada por público e crítica, a obra narra a história de Kehinde, uma mulher africana que, quando criança, é sequestrada do Reino de Daomé (atual Benim) e trazida escravizada para a Bahia.

Na idade adulta ela consegue se alforriar e retorna ao seu país de origem. Anos depois, já idosa e cega, decide voltar ao Brasil para buscar um filho perdido, dando início a uma jornada imersiva.

"É a história de uma mãe, heroína, filha de África, que pariu a liberdade dessa nação", disse Ana Maria Gonçalves em entrevista ao portal g1.

Segundo a Fundação Cultural Palmares, Mahin foi trazida ao Brasil da Costa da Mina e escravizada no século 19. Mas há poucos registros históricos sobre a figura que se tornou símbolo de resistência.

O título faz referência ao período em que era comum que pessoas negras, que pleiteassem cargos sacerdotais, tivessem de pedir formalmente a despensa do chamado 'defectu coloris', o "defeito de cor".

Fruto de uma pesquisa histórica minuciosa, o livro retrata a sociedade escravagista do século 19 e traz a grande diversidade de experiências em relação à escravidão, resistência e liberdade da época.

Quando lançou Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves foi apenas a oitava mulher negra a lançar um romance no Brasil. O primeiro, Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, é de 1859.

A obra de Gonçalves já é um clássico nacional com um vasto legado para o mercado editorial, a cultura e a academia brasileiras. Contribuindo para o surgimento de outras escritoras e escritores negros.

Além de tudo isso, possibilitou a descoberta e redescoberta dos inúmeros brasis que compõem esta terra diaspórica ao contar uma história com diferentes passagens de tempo e lugares do país.

Reconhece que, ainda que não se tenha certeza de que Mahin de fato existiu, isso não diminui em nada seu impacto naqueles que nela se inspiraram para travar suas próprias lutas.

E que o apagamento e o silenciamento das culturas, das religiões e das filosofias das populações negras não aconteceram sem que não houvesse luta, resistência e enfrentamento da parte desses povos.

“[As mulheres] tiveram um papel importantíssimo durante a escravidão. Não se tem quase nada de informações sobre elas, nem no Brasil nem na África”, disse Gonçalves ao O Estado de S. Paulo em 2007.

Assim como Mahin, Um defeito de cor tornou-se um símbolo. Uma referência para quem sabe que a narrativa é uma espécie de poder. 

E resgatar esse poder, a possibilidade de narrar suas próprias histórias, é resgatar também a memória, a ancestralidade e a dignidade sequestrados das populações negras e povos originários do país.

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