Por Luiz Augusto Possamai Borges, Lara Lucena Zacchi e Jair Zandoná*.

Os acontecimentos das últimas semanas, tanto no Brasil quanto em outros lugares do mundo, especialmente nos Estados Unidos, escancararam, com a crise médico-sanitária, o que há muito temos debatido sobre a dignidade das vidas que têm sido historicamente expostas ao risco.

Com tudo o que temos vivenciado com a pandemia da COVID-19, alguns regimes de poder têm se enfatizado, especialmente aqueles alinhados aos ideais defendidos pela agenda neoliberal e pela ultradireita, o que tem destacado, sobretudo no Brasil e nos EUA, práticas necropolíticas – como teorizou o filósofo camaronês Achille Mbembe.

As diferentes informações que circulam e que temos acesso enfatizam, nessa lógica, que as fronteiras entre os corpos que vivem e os que morrem estão muito bem definidas, o que pode ser exemplificado pelo assassinato de George Floyd pela polícia estadunidense ou, ainda, o descaso com que a vida do menino Miguel, de 5 anos, foi prematuramente abreviada enquanto acompanhava sua mãe em seu trabalho de empregada doméstica.

Ainda no caso brasileiro, é importante destacar que o índice de mortalidade pela COVID-19 nas favelas, comunidades de periferia e, também, nas indígenas são maiores que em outros grupos populacionais. Impossível não perguntarmos, insistentemente, quais vidas importam. Daí o porquê de trazer narrativas de pessoas e de identidades que facilmente têm suas vidas suprimidas.

Não é de hoje que o Estado tem sido responsável pela repressão, violência e morte de pessoas cujas subjetividades não se enquadram a um determinado modelo: questões de gênero, raça/etnia, sexualidade, classe, entre outras, importam sempre. Quais experiências podem ser vistas, lidas, seguidas e quais não?

Na história recente do Brasil, por exemplo, o período da ditadura, compreendido entre 1964 e 1985, é significativo para pensarmos nas práticas institucionalizadas que permitiram fazer uso de censura e do controle dos corpos. Nesse contexto, sobretudo as sexualidades dissidentes, as pessoas negras, indígenas, os movimentos e grupos organizados como os de mulheres, os feministas, os operários, os sindicais, foram importantes em estabelecer estratégias de resistência com o propósito de garantir o direito de existir. Apesar de terem pautas e agendas específicas, não foram poucas as vezes que se uniram para reivindicar direitos em prol da liberdade.

Durante nossa investigação, realizada nas coleções do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL/Unicamp), em 2018, encontramos uma expressiva diversidade de documentos, como panfletos, cartazes, correspondências, notícias de jornais, atas e memórias de reuniões, vestígios desse passado recente. Entre os materiais, pudemos ter contato com estratégias usadas pelos grupos para se mobilizarem contra as ações de repressão do Estado. Como exemplo, citamos os atos públicos de resistência à chamada “Operação Limpeza”, instituída pelo então delegado José Wilson Richetti, de São Paulo, e que tinha como alvo recorrente “homossexuais, os negros, travestis e prostitutas”. Porém, “qualquer outra pessoa pode[ria] ser detida” (AEL/Unicamp), tal qual informava o panfleto que chamava para a mobilização. O ato público contra a repressão policial ocorreu no dia 13/06/80, há 40 anos, e articulou lutas, pautas e alianças, como podemos ver na foto acima.

Embora a pesquisa que fizemos no AEL/Unicamp tenha nos oferecido muitas outras discussões e possibilidades de pesquisa, em diálogo profícuo com o movimento homossexual brasileiro – e algumas delas podem ser acessadas no minidocumentário e no capítulo indicados a seguir –, o momento, o contexto e o nosso desejo nos levou a ressoar a importância das lutas e alianças conjuntas que temos acompanhado nas últimas semanas.

A constante necessidade de nos mobilizarmos face às desigualdades que ainda se fazem presentes nos mostra o quanto o passado ditatorial tem suas continuidades, pois os direitos conquistados após a redemocratização estão, recorrentemente, sendo postos em suspenso.

É, sobretudo, via mobilização coletiva que as vozes e vidas plurais se fazem ver, perceber, existir, como corpos que são. Como corpos que somos. As manifestações antirracistas, antifascistas e em prol da democracia que acompanhamos no início de junho repercutem a necessidade constante de reivindicar o direito à existência, porque queremos existir, porque devemos resistir às estratégias de precariedade e de precarização das vidas.

Assista ao episódio:

 

Quer saber mais?
Acesse o artigo “Queremos ser o que somos: o movimento homossexual no Brasil (1964-1985)” para leitura mais aprofundada sobre este tema, disponível no livro resultante do Projeto Mulheres de Luta.

Clique aqui para acessar o webdocumentário Mulheres de Luta completo.

Ficha técnica:
Entrevistas: Carmen Lúcia Luiz, James Naylor Green, Marisa Fernandes
Roteiro: Luiz Augusto Possamai Borges, Lara Lucena Zacchi, Jair Zandoná
Edição: Marina Moros

*Luiz Augusto é graduando do Curso de Bacharelado e Licenciatura em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Integra o quadro de pesquisadores/as associados/as do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH/UFSC), com bolsa PIBIC/CNPq. Desenvolve pesquisas relacionadas aos estudos de gênero e das sexualidades, história dos feminismos e história das emoções nas ditaduras civis-militares do Cone Sul.

*Lara é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina e graduada do Curso de Bacharelado e Licenciatura em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. Integra o quadro de pesquisadoras/es associadas/os do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH/UFSC). Dedica-se à área dos estudos de gênero, história das mulheres e os estudos acerca da memória nos contextos das ditaduras militares do Cone Sul.

*Jair é doutor e mestre em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. É um dos editores da Revista Anuário de Literatura (PPGL/UFSC), editor de resenhas da Revista Estudos Feministas (REF), integra o quadro de pesquisadores/as associados/as do Instituto de Estudos de Gênero (IEG/UFSC) e do Núcleo Literatual. Atualmente, realiza estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Linguística.

Edição de Morgani Guzzo.

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

Últimas