Vou começar apressadamente: a resposta é sim. A história que me levou a refletir sobre essa pergunta aconteceu numa manhã de domingo, quando fui assistir à apresentação de uma orquestra, em um teatro mantido pelo poder público e percebido como o espaço cultural mais nobre da cidade onde resido, uma capital do sul do Brasil. Esse tipo de evento matinal é uma tradição na municipalidade: o ingresso se dá a preço módico e a plateia se enche, de pessoas de todas as idades, inclusive crianças.

Naquele dia, o concerto corria como costumeiro. Até que o intervalo chegou. Nesse momento, ouviu-se uma voz feminina pelos alto-falantes com um anúncio: havia reclamações de espectadores acerca da movimentação de crianças durante a apresentação. Desse modo, disse a voz, pedia-se aos pais que controlassem seus filhos ou, do contrário, que se retirassem do teatro.

Essa fala foi feita de modo tão rude que muitas pessoas ao meu redor na plateia se entreolharam estupefatas. Uma outra boa porção de gente, porém, apoiou o conteúdo do anúncio, com uma salva de palmas. O que fez, em seguida, várias famílias se levantarem, em direção à porta de saída. Digerindo aquela cena, não consegui me conectar à música ao longo de todo o segundo ato do concerto. Retornei para casa muito incomodada. Tudo me parecia distópico, fora de lugar, naquele acontecimento.

Nada em termos sonoros, vindo de adulto ou criança, havia se sobreposto à apresentação da orquestra. E mesmo que alguma manifestação infantil na contramão do protocolo tivesse ocorrido – bem – não deveria existir razão para tão severa polarização a respeito. Afinal, estávamos todos num programa cultural claramente planejado para a pluralização e formação de plateias, em um espaço historicamente elitista. E uma iniciativa como essa inclui crianças, no âmbito de uma educação dos sentidos, que vai se construindo para apreciar a música.

Naquele mesmo domingo, expressei meu incômodo em um post numa rede social, no qual repudiei a postura do teatro, mais ou menos com esses mesmos argumentos. Essa publicação rapidamente cresceu em curtidas e compartilhamentos, tanto de pessoas que estavam no evento, quanto de outras que se solidarizaram. O episódio acabou repercutindo na imprensa e gerou uma nota pública com um pedido de desculpas da direção do teatro.

Em decorrência disso, os comentários no post se avolumaram. A maioria deles em apoio ao repúdio, mas havia uma quantia considerável em discordância. Não escapei, claro, da virulência das redes sociais. Houve quem capturasse o fato de eu não ter filhos – algo que mencionei quando questionada se era mãe por repórteres – para afirmar com ironias que, uma vez nessa condição, não tinha eu legitimidade para falar sobre educação de crianças. Em vez de responder atabalhoada, resolvi pensar sobre. Cá estou.

Maldita pelo sim, maldita pelo não
Filhos. Está aí um assunto que exemplifica bem aqueles becos sem saída, na medida esquizofrênica construídos para oprimir mulheres na sociedade patriarcal. Filhos: se você os tem, é amaldiçoada; se não os têm, também é.

Contemporaneamente, as mães se veem às voltas com pessoas que, de maneira deliberada, dizem-se “Child Free”. Trata-se de uma bandeira perversa, pela difusão em larga escala de ambientes dos mais diversos, nos quais crianças estariam, de antemão, banidas. A editora da revista “Mães que escrevem”, Jo Melo, debateu num artigo esse disparate.

Nesse texto, Jo reproduz um desabafo outrora feito também em rede social. Em suas palavras: “As pessoas bebem, dão vexame na rua, em casa, batem o carro, matam pessoas, mas quando uma criança age como tal, são xingadas, não podem ocupar os mesmos espaços, as mães são descascadas. O mundo não é um lugar seguro para crianças, elas são abusadas, odiadas, negligenciadas, mas as pessoas esquecem, que são tão humanos quanto elas. Crianças têm de ter limites sim, ninguém diz o contrário, (…) mas isso não justifica o discurso de ódio que vejo todo santo dia por aí. (…) A sociedade odeia nossos filhos e nos odeia, mas não se dão conta do lixo que são”.

O contrassenso é mesmo tamanho. A sociedade patriarcal te convoca como fêmea à reprodução. Desde a mais tenra idade, te estimula ao casamento heterossexual e à família nuclear, de prole não numerosa – assevere-se. Mas a prole surge constitutiva da coisa toda. Assim, nessa lógica, uma mulher sem filhos configura uma infâmia e, dessa forma, é boa para se odiar também. A professora Michele Ramos bem exemplifica isso em depoimento ao “The Intercept Brasil, no qual relata sua trajetória docente militante no Complexo da Maré, periferia da cidade do Rio. Diz ela:

“Em 2013, eu elaborei com meus alunos uma carta colocando a realidade enfrentada por eles todos os dias e os pedidos para o novo prefeito. A ideia era entregar para todos os candidatos na época. (…) Na semana seguinte, a diretora me chamou na sala dela e disse que eu não deveria me envolver com políticos. Que precisava parar de pensar em política e, para isso, o ideal é que eu mesma tivesse um filho, porque aí eu teria com o que me dedicar e ia parar de ‘bater de frente’ com os políticos. Essa frase mexeu demais comigo. Você se sente desamparada, sozinha, lutando contra uma forte correnteza”.

Em contraposição ao movimento Child Free – que tenta fazer parecer que todas as mulheres sem filhos dele compactuam, uma inverdade –, o debate público sobre a não maternidade, por muito tempo silenciado, vem ganhando contribuições mais substanciosas no tempo recente. São conteúdos que derrubam a noção da maternidade como um “dom natural”, discutem os intervenientes socioculturais dessa definição e mostram que motivações para não se ter filhos são pra lá variadas, assim como as razões que levam as pessoas a tê-los.

Um desses materiais toma forma no romance Maternidade”, da canadense Sheila Heti. Outro surge no documentário de origem estadunidense chamado To kid or not to kid (minha livre tradução seria “Parir ou não parir”), dirigido por Maxime Trump (não, não tem nada a ver com o Donald), com chegada prevista a outros países em 2020.

Um ponto sensível e merecedor de atenção nesse contexto, para além das confrontações entre mães e não mães com a sociedade, parece-me residir nas relações dessas mulheres entre si. O episódio com que abro este texto se mostra bom para pensar sobre isso.

“Lugar de fala” versus representatividade
Naquela ocasião, como contei, fui questionada por pessoas – homens e mulheres – acerca da minha legitimidade, como não mãe, em posicionar-me publicamente, repudiando a postura censória do teatro diante das crianças presentes no concerto. Alguns, portanto, diziam que eu não possuía “lugar de fala”. A contar de 2017, essa expressão difundiu-se no Brasil com a notoriedade do livro “O que é lugar de fala?”, assinado por Djamila Ribeiro, filósofa e ativista do feminismo negro.

Desde então, houve avanços reflexivos, mas também distorções baseadas nesse conceito, pelos múltiplos grupos que vêm fazendo uso dele. Por isso, é importante retornar às palavras de Djamila, que apoia sua argumentação numa série de outras autoras renomadas – por exemplo, Lélia Gonzalez, Patricia Hill Collins e Grada Kilomba (apenas para citar algumas; vale ler todas).

Djamila já advertia que o “lugar de fala” abarca uma discussão sociológica “estrutural” e “ética”. Logo, não ganha forma por vivências individuais isoladas, mas sim pelo reconhecimento do “lócus social” de cada uma/um. Isso significa que, no interior de uma sociedade marcadamente desigual e violenta como a brasileira, ao identificar de que posição falamos, quem pode ou não falar em uma situação, sobre o que se pode falar e o quais as consequências de uma dada fala, abrimos uma janela para ver, pensar e agir sobre diferentes tipos de opressões e privilégios disso decorrentes. Não raro, tais opressões se desnudam sobrepostas, frutos de hierarquias seculares de poder baseadas, a um só tempo, em segregações de gênero, raça, classe, orientação sexual, região, idade, etc.

Ela enfatiza, assim, que “lugar de fala” não se confunde com “representatividade”. Assinala na página 83-84 do livro: “Uma travesti negra pode não se sentir representada por um homem branco cis[gênero, ou seja, que concorda com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer], mas esse homem branco cis pode teorizar sobre a realidade das pessoas trans [gêneras, isto é, que discordam do gênero que lhes foi atribuído ao nascer] e travestis a partir do lugar que ele ocupa. (…) Se existem poucas travestis negras em espaços de privilégio, é legítimo que exista luta para que elas de fato possam ter escolhas numa sociedade que as confina num determinado lugar, logo é justa a luta por representação (…). Porém, falar a partir de lugares, é também romper com essa lógica de que somente os subalternos falem de suas localizações, fazendo com que aqueles inseridos na norma hegemônica sequer se pensem”.

A filósofa e ativista oferta outro bom exemplo dessa distinção numa entrevista televisionada, em que afirma: “Me irrita muito o esvaziamento da palavra empatia. As pessoas tratam ‘ah, não, eu tenho empatia pela sua luta’, ‘parabéns pela SUA luta’. Essa deveria ser uma luta da sociedade. A pessoa está falando ‘ah, a sua luta’, não é a minha luta. A gente está numa luta antissistêmica, antirracista, antissexista, as pessoas deveriam ter consciência disso, não é a MINHA luta”.

Logo, à luz da representatividade, configura-se plenamente justo que grupos sociais desprivilegiados advoguem que ‘nada sobre nós será feito sem nós’. O desenho de ações afirmativas precisa, imprescindivelmente, advir das demandas vividas na carne pelos coletivos marginalizados, não feitas por supostos experts e seus ideais sobre o que seria mais oportuno. Quem não faz parte de tais coletivos, por sua vez, pode problematizar e contribuir, desde o seu específico “lugar de fala”, para com as ações afirmativas legitimadas, primeiro, pelos seus respectivos públicos-alvo.

Assim, por exemplo, para operacionalizar a Lei n. 10.639/2003, que torna obrigatório nas escolas do país o ensino da história e cultura afro-brasileira, não basta que somente professoras/es negras e negros falem em sala de aula. É preciso que as/os docentes brancas e brancos falem também, a partir do seu lugar, impulsionando um debate franco sobre como os privilégios da branquitude se assentam numa história de opressão e violência, cujo curso precisa mudar.

Há possibilidade de estabelecer paralelos disso com a questão da maternidade. Mães e não mães, pelo fato de serem mulheres, se situam numa posição de opressão na sociedade patriarcal. Isso não pressupõe, entretanto, que ocupem o mesmo lugar nessa hierarquia de poder.

Do mesmo modo, mães brancas e mães negras estão em locais diferentes, considerado o racismo como fator interveniente.

Nesse modelo desigual de organização social, ser mulher é, de modo geral, sinônimo de cuidado – da casa, dos homens, das crianças, dos enfermos e também dos idosos (que, diga-se de passagem, crescem em número com o aumento da expectativa de vida, aspecto que demanda uma discussão urgente e ainda não delineada com robustez pelos feminismos recentes). Nesse cenário, contudo, a criação de filhos possui particularidades, porque demanda considerável tempo, dentro de cada dia e ao longo de anos.

A despeito das lutas que, às custas das vidas de muitas, conseguiram mudanças nesse estado de coisas, já é de muito sabido que a conquista de direitos fundamentais pelas mulheres não representou uma distribuição equitativa do cuidado. Ao contrário, este somou-se ao exercício do trabalho fora da esfera doméstica, como uma jornada suplementar. Para dar conta do recado, as mais privilegiadas vêm, desde então, terceirizando o cuidado que lhes compete para outras menos favorecidas em termos de classe e raça.

E, dessa forma, o ato de cuidar se transfere e se acumula mais sobre algumas mulheres que perante outras.

Quanto mais cuidado uma mulher aglutina como sua responsabilidade, mais desvantagem soma para si na sociedade patriarcal. Sob tal lógica, mulheres não mães são privilegiadas no manejo mais autônomo do seu tempo, menos implicado no cuidado. Como observa o sociólogo Richard Sennett, o tempo é o capital essencial que as/os trabalhadoras/es têm para vender e configura recurso cada vez mais avidamente sequestrado, no âmbito de um sistema capitalista agora neoliberal de produção. As condições de trabalho, na atualidade, são difusamente precárias. Todavia, a sabotagem para com as mães é maior, pois a elas, como mulheres, o mercado se diz modernizado e aberto, mas, ao mesmo tempo, as expele por não terem tempo “suficiente”.

A voz das mães se mostra, por conseguinte, obrigatória no processo de arquitetar políticas e ações capazes de defrontar as opressões enfrentadas em suas realidades cotidianas.

As mulheres sem filhos, por sua vez, podem ser aliadas delas, numa relação de ganha-ganha, porque quando aquelas mais oprimidas alcançam liberação, os efeitos benéficos disso têm boa chance de repercutir sobre todas as demais. O contrário já não é verdadeiro.

Allyship = aliança
Nas plataformas feministas, fala-se em ‘sororidade’ que, grosso modo, seria a fraternidade entre mulheres em prol do seu bem comum. A ideia de ‘aliança’ expande essa noção, porque permite ir além das batalhas femininas, para visualizar possibilidades de engajamento em lutas de outros grupos subalternizados na nossa sociedade. O termo configura uma tradução da palavra anglófona ‘allyship’, empregada por diferentes movimentos sociais estadunidenses.

De saída, é preciso dizer que se tornar aliada está longe de ser algo óbvio ou romântico. Em seu livro Black Girl Dangerous: on race, queerness, class and gender (em livre tradução, “Garota negra perigosa: sobre raça, lesbianidade, classe e gênero”), a escritora norte-americana Mia McKenzie oferece trilhas para isso, a partir do relato de suas vivências como ativista mulher, negra e lésbica. Vejamos algumas veredas:

  1. Não falar sobre diversidade sem contemplar a problemática da opressão sistêmica;
  2. Educar-se para saber como tratar disso – há muito material disponível;
  3. Não apenas reconhecer privilégios, mas se posicionar e agir contra eles;
  4. Aprender a ouvir e ouvir sempre mais e mais;
  5. Falar sem silenciar outrem;
  6. Apoiar concretamente os coletivos dos quais se quer ser aliada: doando, voluntariando-se, denunciando injustiças, abrindo/remodelando espaços, divulgando produtos & serviços, contratando, etc.;
  7. Saber aceitar críticas e rever suas posturas enquanto aliada;
  8. Não demandar suporte emocional: são os dilemas e sentimentos da/o outra/o que estão em questão;
  9. Esforçar-se muito e continuamente nessa tarefa.

Desde a perspectiva da “aliança”, pode-se situar, de maneiras ética e estrutural, a educação de filhos não como uma tarefa exclusiva das mães, mas sim um dever distribuído a toda a sociedade, porque assim ela se constitui, de pessoas.

“É preciso uma aldeia para se educar uma criança”. Trata-se de um provérbio muito proferido, mas que deve ser realmente debatido com a força que detém. Quem é a aldeia no mundo contemporâneo? Pais, familiares, vizinhos, educadoras/es, gestoras/es, profissionais de saúde e assistência social, cientistas, artistas, esportistas, enfim, todas aquelas e aqueles que deveriam ser partícipes efetivos do processo de educar. Essas pessoas não necessariamente têm ou virão a ter filhos. E esse fato não lhes impede de atuar como aliadas/os de mães e suas crianças, problematizando questões e buscando transformações a partir de “lugares de fala” diversificados.

A educação maternal constitui, assim, uma face fundante, porém, não se confunde com educação integral, que deveria se dar em múltiplas frentes sociais.

Logo, a defesa de que apenas as mães teriam “lugar de fala” para tratar de crianças comporta riscos, que se aguçam no atual momento do país, perante um governo de extrema direita.

Se somente as mães puderem falar, então reforça-se, ainda que indiretamente, a máxima “não te metas com meus filhos”, que vem sustentando tanto uma equivocada noção de “ideologia de gênero”, quanto uma questionável proposta de educação domiciliar, ambas na contramão de uma escola verdadeiramente democrática. Se for assim, também permanece na obscuridade a figura do pai, que precisa vir à tona, para defrontar a histórica ausência e desresponsabilização paterna na educação de filhos. O debate, como se vê, não é estritamente doméstico, mas profundamente político.

* Juliane Bazzo é antropóloga, professora e pesquisadora. Investiga relações entre marcadores sociais da diferença e educação escolar. Gerencia o blog de divulgação científica ‘Primavera nos dentes – Ensaios sobre a escola e a realidade brasileira’.

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