Dois casos de violência sexual durante atendimento médico vieram à tona na última semana, em Santa Catarina. Na sexta-feira (15), o Conselho Regional de Medicina de SC abriu processo para investigar um ginecologista e obstetra, coordenador do departamento de obstetrícia e ginecologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), depois de tomar conhecimento de denúncias de abuso sexual contra ele pela imprensa. Pelo menos cinco pacientes relataram abusos que aconteciam durante o atendimento ginecológico. Em Itajaí, um clínico geral que atuava em vários hospitais do estado foi preso temporariamente no último sábado, depois que vídeos contendo cenas de violação sexual foram entregues à polícia. Dezesseis mulheres aparecem nos vídeos gravados durante atendimento médico.

Os médicos são investigados pelo crime de violação sexual mediante fraude, previsto no artigo 215 do Código Penal que integra o capítulo “Dos crimes contra a liberdade sexual”. Esse crime é caracterizado pela prática de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. A pena prevista é de dois a seis anos de reclusão. O clínico geral é investigado também por estupro de vulnerável, já que o crime pode envolver menores.

Tirinha: Gabriela Goulart

Vítimas eram violadas e filmadas durante atendimento
De acordo com o delegado Alexandre Carvalho, da Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso de Itajaí (DPCAMI), uma denúncia chegou à delegacia junto com um CD que trazia imagens gravadas pelo clínico geral durante atendimento, sem que as pacientes tivessem conhecimento. Conforme relata Carvalho, as imagens indicam que algumas vítimas estavam inconscientes e outras imobilizadas. “Não houve conjunção carnal, há cenas que chamaram nossa atenção, uma em que ele introduziu o dedo na vagina da paciente e outra em que deu um beijo nos seios da paciente aparentemente menor de idade. Ele filmava os toques que fazia nas vítimas, assim como o corpo delas”, relatou o delegado.

O médico atuava em hospitais de Navegantes, Itajaí, Joinville, Itapema e Nova Trento, e na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Itajaí. Segundo Carvalho, o objetivo agora é identificar as 16 mulheres que aparecem nos vídeos. Caso as vítimas não se apresentem, o médico será solto em 30 dias. O suspeito responde processo criminal por omissão de socorro.

Em nota, a Secretaria de Saúde de Itajaí afirmou que ainda não foi informada oficialmente sobre as denúncias e que a Procuradoria Geral deve acompanhar o caso. “A Secretaria de Saúde informa que repudia veementemente qualquer ato que fira a integridade de pacientes e que não medirá esforços para identificar e punir atitudes que descumprem com as leis e as normas que regem a saúde pública”.

Nesta semana, o CRM-SC informou que tomou conhecimento dos fatos pela imprensa e instaurou sindicância “para averiguação minuciosa do caso divulgado”. “Importante destacar que os procedimentos investigatórios deste Conselho têm caráter sigiloso, visto que a divulgação de informações sobre casos específicos pode causar nulidade processual”, informaram em nota.

Liberdade sexual violada
Já em Florianópolis, um médico obstetra, que é especializado em HPV – vírus que pode causar câncer no útero – e professor da UFSC, foi denunciado em 2017 por cinco pacientes que buscaram a delegacia para relatar o abuso sexual cometido por ele durante os exames ginecológicos. À época, em uma operação de busca e apreensão no consultório do médico, no bairro Pantanal, os policiais encontraram preservativos, calcinhas e gel lubrificante. O Ministério Público de Santa Catarina o denunciou à Justiça por violação sexual mediante fraude. O acusado também responde processo na vara cível por erro médico. 

Os relatos das vítimas são muito similares. O médico se aproveitava da intimidade durante o exame ginecológico para fazer perguntas relacionadas à vida sexual da paciente, colocando-se como alguém que poderia ensiná-la como alcançar orgasmo, identificar o ponto G e outras formas de sentir prazer. A investida ocorria sem que ao menos a paciente tivesse demonstrado interesse por tais informações.

“Quando ele foi fazer o toque vaginal, ele falou assim pra mim: ah, começou falar de orgasmo, não sei o que do Ponto G, sendo que eu não tinha perguntado nada disso em nenhum momento”, relata uma paciente ao NSC Notícias.

“Eu nunca tinha ido, nunca tinha feito um exame ginecológico assim, e eu achei que não tava muito certo, porque ele começou a estimular… Começou a me estimular, e… eu olhei assim pra baixo, e vi que ele tava ficando vermelho e suado assim, e com aquele olhar, assim, com um olho meio estranho. Eu fiquei bem constrangida. É bem complicado dizer isso, mas até hoje eu nunca tive uma única relação sexual que eu não tenha pensado nisso, nesse dia”, disse outra vítima.

De acordo com a assessoria de imprensa do MP-SC, a primeira audiência ocorreu em 24 de janeiro deste ano, quando as vítimas começaram a ser ouvidas no fórum da Capital. A próxima audiência está prevista para 8 de maio. Duas das vítimas, no entanto, foram ouvidas como testemunhas de acusação, porque no caso delas as consultas aconteceram entre 2007 e 2008, ultrapassando o prazo legal de seis meses para registrar a ocorrência e proceder à representação, segundo previa a lei válida à época. Com a alteração pela lei 13718/18, a ação penal dos crimes de violação sexual passaram a ser incondicionadas – ou seja, sem necessidade de representação da vítima – e por isso imprescritíveis, como ocorria antes nos casos de vítimas vulneráveis.

O Conselho regional também informou em nota que referente às denúncias apresentadas pelas pacientes “foram adotadas as medidas cabíveis para apuração de eventuais infrações ao Código de Ética Médica. O CRM-SC reitera seu compromisso com o exercício da boa medicina numa clara proteção da sociedade”.

Conseguimos contato com o médico por meio do perfil pessoal dele no facebook. O acusado encaminhou uma carta aberta, onde se posiciona: “a conduta que me imputam não representa a realidade”. Conforme afirmou, ele não pode se defender publicamente como gostaria dado que o processo corre em segredo de justiça. “Infelizmente, esse silêncio me faz refém do que de mim se falou”. Disse que é vítima de difamação, e pede “que haja serenidade e que se espere pela apuração e julgamento dos fatos na Justiça”.

“Por fim, reitero meu mais absoluto respeito à classe médica (jamais a envergonharia), e às famílias da Grande Florianópolis, da qual a minha faz parte, assegurando-lhe que sempre respeitei e respeitarei meu juramento profissional e minhas pacientes”.

A UFSC informou em nota enviada ao Catarinas que o professor é servidor docente da instituição desde 1992, lotado no Centro de Ciências da Saúde (CCS). Seu contrato de trabalho é de 40 horas semanais, sem dedicação exclusiva. “Esclarecemos que o professor não é médico do quadro de funcionários do Hospital Universitário, apenas exerce atividades de docência no espaço do hospital. Informamos que não há, no âmbito administrativo da UFSC, qualquer denúncia ou processo instaurado contra o professor por assédio sexual”.

Casos são frequentes no país

Para a obstetriz Ellen Vieira, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, é salutar que durante uma consulta ginecológica haja uma aproximação entre médica/o e paciente, de modo que a/o profissional possa propor uma conversa sobre o conhecimento do corpo e exercício da sexualidade. “Em geral, os profissionais de saúde têm condutas prescritivas, autoritárias e pouco explicativas dos procedimentos. Porém, o que este médico fez não foi nada educativo. Certamente não foi um bom momento abrir uma conversa com a mulher vulnerabilizada nua, com as pernas abertas em cima de uma perneira, da maneira como ela descreveu”, analisa.

Uma conduta profissional adequada para a abertura do diálogo, no entanto, requer sensibilidade e escuta. “Se a mulher não traz demandas da vida pessoal para o atendimento, primeiro é preciso entender se ela está sentindo espaço pra isso, depois ver o que ela precisa/quer. A gente procura pensar em como promover espaços de escuta ativa, para pessoa cuidada se sentir confortável para falar, se abrir”, diz ela.

Casos de abuso sexual em consultório não são isolados. Uma pesquisa realizada pelo Catraca Livre constatou que 53% (374 delas) das mulheres entrevistadas, do total de 700 participantes, já sofreram abuso sexual ou moral em consultas com ginecologistas. No levantamento on-line entre os dias 15 de abril e 5 de maio de 2016, as entrevistadas responderam uma série de questões sobre a conduta de seus médicos. A pesquisa foi realizada com leitoras de todo o Brasil, que enviaram relatos de cidades como Natal (RN), Fortaleza (CE), Salvador (BA), Teresina (PI), Rio de Janeiro (RJ), Niterói (RJ), São Paulo (SP), Contagem (MG), Belo Horizonte (MG), Londrina (PR), Joinville (SC) e Pelotas (RS).

“Quando ele examinou minha vagina, começou a me masturbar e disse que o modo como eu depilava meus pelos pubianos era coisa de ‘mulher que gostava de sexo’”, relatou uma das entrevistadas.

Contadas em anonimato, as histórias denunciam condutas constrangedoras e abusivas, como cantadas, frases de cunho sexual e até estupro. Relatos que refletem a violência de gênero e o machismo enraizados na sociedade brasileira. “Ele dava um tapa na minha bunda para eu relaxar”, “durante o exame endovaginal, ele se colocou entre minhas pernas e fazia movimentos como se segurasse seu pênis, e não o aparelho” e “quando eu estava anestesiada, pois tinha acabado de dar à luz, o médico colocou o dedo no meu ânus e chamou mais médicos para fazer isso”.

A discussão sobre o tipo penal

Casos como esses que ocorrem em consultórios médicos têm sido entendidos enquanto crimes previstos no artigo 215, que isenta a violência física, cujas penas mínimas podem resultar em restrição de direitos, ao contrário do estupro, em que as penas levam necessariamente à restrição de liberdade. Isso, porque de modo geral, o sistema de justiça tem compreendido a violência ou grave ameaça, características do estupro, somente como violência física – ainda que o artigo penal não a especifique, sem considerar as dimensões moral e psicológica, como explica Daniela Felix, advogada feminista.

“Ainda não há um entendimento sobre a amplitude da violência da qual trata o artigo 213, que tipifica o estupro. Juristas e aplicadores do direito, grande parte homens brancos e privilegiados, entendem que violência é só física e com agressão, como amarrar ou introduzir objetos que deixem marcas da violência. O fato a considerar é se as vítimas se sentiram violadas, independente do órgão que se utilizou para essa lascívia, se foi a mão ou o pênis”, explica.

Entramos em contato com o promotor Francisco de Paula Fernandes Neto, da 2ª Promotoria de Justiça da Capital, que nos confirmou seu entendimento de que somente a violência física é capaz de caracterizar o estupro. Segundo Neto, estupro é quando para obter a conjunção carnal ou ato libidinoso, sem o consentimento da vítima, o agressor recorre à “violência (agressão física, submissão física) ou grave ameaça (intimidação com ou sem arma)”. 

Enquanto o crime de violação sexual mediante fraude acontece quando o abusador recorre ou aproveita de circunstância que iluda a vítima para ter com ela conjunção carnal ou ato libidinoso sem que haja consentimento. Conforme exemplo dado pelo promotor, a vítima supõe estar passando por um procedimento profissional regular, quando na verdade “está sendo utilizada para satisfazer a lascívia do agente”.

Daniela Felix lembra que a classificação dos diversos tipos de violência pela Lei Maria da Penha suscitou maior discussão sobre a concepção que se tinha até então acerca da violência empreendida no estupro. “A violência que consta no tipo do estupro não pode ser somente física, mas moral, psicológica. A ausência de manifestação da vontade da vítima, a não liberdade, já é por si só violência. Os movimentos feministas estão aí, especialmente o de juristas feministas, para a gente pensar os pressupostos machistas do sistema de justiça.”

De acordo com a advogada, ainda que inicialmente o crime seja enquadrado pelo MP como violação mediante fraude, o juiz pode reclassificar o tipo penal para estupro na sentença, caso haja provas suficientes do crime.

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