Este é o segundo capítulo da série Maternidade Algemada: grades que separam vínculos.

Na pequena sala da assistente social, aguardo Maria das Dores, a primeira protagonista que se dispôs a conversar comigo e a compartilhar sua história. Psicóloga e assistente trabalham em suas mesas enquanto programo o celular para gravar o diálogo que teremos nas próximas horas. Poucos minutos depois, ouço o barulho das correntes e as batidas dos cadeados abrindo os portões que separam a área administrativa da parte interna da prisão.

Logo, Maria aparece com um olhar acanhado diante da porta. As mãos algemadas para frente, vestida com o uniforme laranja e acompanhada por uma agente penitenciária. Dá um passo curto para o interior da sala, como quem aguarda aprovação para entrar. Eu a convido a se aproximar, sentar e me apresento.

Como quem tenta iniciar a própria biografia de uma vida trágica e anônima pelos momentos triunfais, Maria relata uma experiência de que participou dentro da penitenciária a partir de um projeto promovido por uma estudante de mestrado. Ela e outras presas participavam de oficinas de pintura e crochê.

Em paralelo a essas atividades de integração, enviavam cartas contando suas histórias para destinatários desconhecidos. A maioria deles respondia. Uma dessas respostas ficou especialmente gravada na memória de Maria. Com a voz emocionada e olhos brilhantes como os de uma criança ao ganhar a primeira medalha na escola, descreve que um rapaz escreveu-lhe desejando forças para cumprir a pena e bênçãos divinas para sair da prisão.

“Ele agradeceu a oportunidade de conhecer minha história e, como forma de homenagem, disse que daria o meu nome à filha que ele e sua noiva esperavam”, finaliza, com um sorriso de quem pode bater no peito e dizer que tem alguma vitória para contar depois de uma vida de hostilidade e rejeição.

Conversamos pelas duas horas seguintes e no final compreendo: não foram os quase dois anos de encarceramento os responsáveis pelas marcas que dão um aspecto de pessoa mais velha ao seu rosto de apenas 36 anos. Não foi o período de prisão que conferiu aos olhos negros o semblante tristonho e gasto pela vida, mas tudo o que aconteceu antes.

Natural de Itamaraju, município do interior da Bahia, a 740 quilômetros de distância de Salvador, Maria estudou até a quarta série. Foi abandonada pela mãe e pai biológicos antes de completar dois anos de idade. É mãe de seis filhos e foi condenada a oito anos de prisão.

Há quase 10 anos morando em Santa Catarina, o sotaque nordestino não está mais tão presente na sua fala. Nem preciso fazer perguntas: com os olhos fixados em mim, ela parece ter necessidade de falar o máximo que pode e aproveita cada segundo do nosso diálogo para contar tudo que consegue lembrar.

A voz se enche de ternura ao descrever os momentos em que a rotina do cárcere era quebrada pelos sons e descobertas de seu bebê. Eduardo, o filho mais novo, permaneceu com ela na penitenciária desde o segundo mês de vida, até completar um ano. Nesse dia, repetindo o sacrifício de todas as mães presidiárias em regime fechado, ela autorizou que o menino fosse levado para o mundo dos livres a fim de ter o espaço que uma criança na sua idade precisa. A noite seguinte a despedida foi intercalada entre cochilos e as lágrimas que insistiam em brotar, quando se virava para o lado com cuidado e o espaço estreito no canto do colchão estava vazio. Somente o cheiro de bebê ainda permanecia no ar.

Maria nunca recebeu qualquer visita de familiares, somente de Valéria, a única amiga presente nos momentos mais dramáticos de sua vida no cárcere. O ex-marido também está preso e ela não quer qualquer tipo de contato com ele, a quem culpa por sua sorte e condição de presidiária. Dois filhos estão sob os cuidados de tios paternos; uma, com um casal de conhecidos e Eduardo, com pouco mais de um ano, mora numa casa lar.

Ele foi encaminhado para o local quando completou um ano, sem o consentimento da mãe, que foi informada em juízo no dia da decisão de que o filho seria levado para a casa da amiga Valéria, a única pessoa em quem confiaria a tutela do caçula. Os dois filhos mais velhos, que nem conhecem Santa Catarina, ficaram no Nordeste com a avó materna. Faz mais de oito anos que mãe e filhos não se veem.

A infância pobre e sem muitas perspectivas contribuiu para Maria decidir se casar cedo. O relacionamento resultou em dois filhos e posteriormente em separação entre o casal. Ao perguntar os motivos do término do relacionamento, ela é direta: “Não deu mais certo”. O segundo casamento traria mais quatro filhos e a separação por motivos muito graves, sobre os quais ela nem poderia cogitar.

Da Bahia para a colônia alemã: a única família negra

Antes de se tornar uma presidiária e assistir a família se despedaçar como pétalas ao vento, Maria morou em Itamaraju até 2010, quando ela, o marido Fernando e a filha Jéssica, com três anos se mudaram para Antônio Carlos, município da região metropolitana de Florianópolis. Deixou com a mãe os dois filhos mais velhos, resultantes do primeiro casamento, e seguiu. Os planos não poderiam ser melhores, pois os cunhados, que já haviam se mudado antes deles, enviavam boas notícias sobre as condições salariais em Santa Catarina.

Após o desembarque no aeroporto da capital, 40 quilômetros de estrada ainda separavam a família recém chegada do Nordeste à sua nova casa em Antônio Carlos que, apesar da proximidade com a capital, mantém os ares de cidade pequena do interior. Igrejas, escolas, o terminal de ônibus, alguns bancos, comércio de lojas compõem o centro da cidade, como em qualquer lugar pequeno.

O diferencial da beleza verde mesmo está nos bairros residenciais, onde as casas são cercadas de campos, sítios particulares, plantações de legumes e árvores frutíferas nos pátios. Muitas ruas são estradas de chão sem calçamento que dão a sensação de vida próxima à natureza, sem os problemas das grandes cidades. Maria e o marido alugaram uma casa de madeira em um terreno individual, com um pequeno pátio numa dessas áreas mais rurais do município.

Quase quatro anos depois morando na região, o casal teve o quarto filho, Cássio, mas ainda não se sentia pertencente ao lugar. Não havia descoberto as vantagens que os cunhados anunciaram sobre o município. Logo o paraíso bucólico neste recanto europeu do Sul do Brasil mostrou sua face cruel. Com as dificuldades de Maria para arrumar emprego, a única renda vinha de Fernando. Ela procurava vaga todos os dias, mas como frequentou a escola por poucos anos e mal sabia ler e escrever, as restrições aumentavam e as portas se fechavam.

A cor de pele do casal e o fato de serem forasteiros, também não ajudaram a abrir caminho na aparentemente acolhedora cidade de colonização alemã.

“Quando a gente é negra, a gente ainda sofre com o racismo. Ninguém me empregava e as pessoas não se aproximavam da gente”, conta ela, que tentou vários trabalhos, mas nada deu certo. “A única coisa que deu certo foi emprego de babá. Até 2016 eu fui babá, a única coisa que sei fazer até hoje”.

 

 

Sentada ao meu lado na varanda de sua casa, Valéria conta que se aproximou da amiga forasteira nas visitas que fazia às residências como agente de saúde. Suas filhas, Jessica e Sara eram colegas de escola e amigas. Pelos relatos que ouço, Sara foi a única amiga de Jessica nas séries iniciais da escola. Valéria confirma o preconceito racial dos vizinhos. “Aqui não tinha muitos moradores e acho que nenhuma família negra. Quando chegaram, eram os únicos, então ninguém se aproximava deles, assim como viraram a cara para mim quando trouxe Maria para morar aqui em casa porque não tinha para onde ir.”

Visita interrompida

Uniformes de cor laranja e branco pendurados nos varais improvisados e sempre as mesmas pessoas ao seu redor compõem o cenário rotineiro dos alojamentos que passam a representar esse território estrangeiro imediatamente reconhecido por esses signos no imaginário das detentas. Nesta tarde, contudo, as memórias de Maria nos transportam para outros cenários, fora dos muros da penitenciária do bairro Trindade e para outros tempos.

Seu tom de voz agudo e de vocabulário simples com uma certa pressa como quem sabe que seu tempo é limitado, nos levam para 2010. Mais precisamente ao dia em que garantiu aos dois filhos mais velhos que a separação entre eles era necessária para que ela e o marido pudessem prover uma vida melhor da que tiveram até aquele momento.

Depois eu soube pela própria Valéria que, no dia agendado, ela ficou trancada por quase duas horas no trânsito de Florianópolis e chegou atrasada. O motorista da penitenciária que a buscou em casa, até tentou rotas alternativas, “mas aquele dia tava complicado”, define Valéria.

Só conseguiram conversar por cinco minutos, quando a linha foi interrompida e Maria teve que colocar o interfone no gancho, obrigando a amiga do outro lado do vidro a fazer o mesmo, sem nem ter conseguido entregar todas as notícias que a mãe solitária aguardava há meses.

Difícil entender o porquê de tamanha intolerância com o atraso justificado pelo próprio motorista. Realmente, não são compreensíveis as implicações de 15 minutos a mais em uma visita que foi por várias ocasiões prorrogada. Sem contar as vezes em que Valéria foi no horário marcado e não conseguiu entrar sem “nenhuma justificativa plausível”, como ela mesma conta.

Fora do procedimento legal

A monótona tarde de sábado na tranquila Antônio Carlos é embalada pelo barulho da chuva que não cessa desde que cheguei. Na sala de casa, sentada num confortável e espaçoso sofá, Valéria me conta que como agente de saúde, tomou as providências para a amiga realizar laqueadura quando, uma semana antes do procedimento, Maria descobriu que estava grávida. Foi muito difícil convencê-la a ter esse filho, hoje Eduardo está com um ano e meio, mas prometeu que a ajudaria como pudesse a criar a criança.

Os próximos nove meses foram alternados entre hospital e casa. Só então, Valéria descobriu que Maria estava com depressão, crises de ansiedade, glicose desregulada, pressão alta, entre outros sintomas dos quais ela nunca havia se queixado. Nesse momento, ela diz que, como sua vizinha na época, hoje se sente culpada por estar tão perto e não ter percebido o martírio que Maria sofria.

Enquanto esperava o último filho, Maria mal sabia o destino dos demais, tirados dela de uma hora para a outra pelo Conselho Tutelar. Valéria acredita que o último episódio aconteceu em decorrência de denúncias dos familiares do marido que nunca gostaram de Maria.

“Criticavam-na por tudo, principalmente, pela forma como usava o pouco dinheiro que ganhava. Ela queria que os pequenos experimentassem iguarias como iogurtes e biscoitos, alimentos que os dois filhos mais velhos nunca puderam provar na infância”, explica, com um olhar triste fixado no chão.

Hoje, Jéssica, 11 anos e Cássio, sete, foram levados para os tios. Bruna, de quatro anos, para uma família conhecida dos tios, sem nenhum vínculo sanguíneo com a sua. Valéria sabe disso, mas ainda não teve oportunidade de contar a Maria. Essa situação foge ao procedimento legal, que prioriza a família de origem ou alguém que tenha vínculos afetivos e não foi obedecida nesse caso.

Essa criança precisa de mãe?

A preferência é sempre que os filhos de uma mãe ou de pai presidiário fiquem com um familiar ou alguém indicado pela mãe que tenha um vínculo afetivo e condições financeiras, psicológicas e protetiva para cuidar dessa criança enquanto a mãe cumpre sua pena. Marise Serafim, assistente social responsável pela análise de pedidos de prisão domiciliar na Vara de Processos Penais do Fórum Central de Florianópolis, informa que o ECA nomeia esse processo como guarda provisória e, como ela explica, somente “em último caso se encaminha para as casas-lares, pois a intenção é de manter o vínculo e recuperar os laços quando essa mãe for libertada”.

Ainda de acordo com Marise, é necessário analisar cada caso, suas necessidades específicas e observar os direitos que esse cidadão tem garantido em lei. A pergunta que sempre chega na Vara é: essa criança precisa da mãe? A resposta de Marise pode surpreender para quem não compreende o ponto de vista da política de assistência social, no qual os valores emocionais da maternidade não estão acima das condições objetivas e subjetivas de atendimento à criança.

“Toda criança precisa, mas se ela estiver bem assistida em suas necessidades básicas por um responsável provisório protetivo, é melhor que essa mãe cumpra a sua pena e, após o cumprimento, tenha acompanhamentos de políticas públicas para que retorne a sua casa, mas não retorne para o mesmo ciclo que a levou a prisão. Somente em último caso é que se deve considerar o envio das crianças para uma casa lar ou para uma família substituta”, explica.

Em outras palavras, para o sistema judiciário e para a assistência social, os interesses da criança não devem ser subjugados às necessidades emotivas da mãe presidiária. A luta jurídica para ficar perto dos filhos é um drama tipicamente feminino e solitário nas cadeias. Entre os pedidos de prisão domiciliar que chegam até a mesa, a esmagadora maioria são de mulheres. Marise afirma que dos últimos cinco recebidos, somente um era do pai.

“As mães ainda são o centro da família”, completa a assistente social.

Sem os filhos e sem casa

Até ser levada presa em 2017, Maria estava morando há nove meses na casa de Valéria, mudança decorrente de uma sequência de episódios, como a amiga mesma descreve: “primeiro, o marido dela começou a usar drogas e a se tornar dependente de substâncias químicas e de bebidas alcoólicas. Quando fazia isso, ficava irreconhecível, tão agressivo que Maria tinha medo dele”.

Após alguns contatos, Valéria conseguiu uma vaga para o marido da amiga numa clínica de reabilitação. O marido internado significava certa instabilidade financeira, pois era ele quem provia a maior renda da casa. Em contrapartida, significava alívio para Maria, que poderia dormir e acordar sabendo que seu marido não começaria a beber ou a usar drogas a qualquer momento a ponto de se tornar ameaçador à sua integridade física e à de seus filhos.

Diversas vezes, Maria pensou em voltar à Bahia, mas desistia fácil da ideia ao pensar que não conseguiria fazer essa Odisseia de regresso à terra natal sozinha. Também não teria coragem de abandonar os filhos sob os cuidados de um homem que às vezes era protetivo, mas na maior parte do tempo era quem mais lhes causava medo e pavor com o comportamento agressivo, alterado pelas drogas.

Logo que Fernando foi internado, contudo, o mundo de Maria desabou, fazendo vingar um destino de infelicidades que só piorava. Certo dia, estava em casa com suas três crianças e cuidando de mais duas de suas patroas, quando avistou um carro do Conselho Tutelar parar em frente ao portão, dois profissionais informaram-na que tinham recebido denúncias de maus tratos contra seus filhos e sua casa era desorganizada demais para criá-los. Levaram os três filhos de Maria.

Uma mulher com seus filhos retirados de sua tutela e levados por um órgão de proteção à crianças entende que seu trabalho como babá pode ser comprometido e nem insiste em se manter na sua casa quando o locador pediu-a de volta. Sem saber para onde ir, pediu ajuda à amiga Valéria que, mesmo contrariada por conhecidos e vizinhos que sempre rejeitaram a família forasteira e nordestina na região, hospedou-a em sua casa.

Valéria, que viu o filho da amiga nascer em suas mãos no Hospital Universitário de Florianópolis há menos de um mês do dia em que foi presa, ficou com ele sob seus cuidados. “Como ele chorou naquela noite”, relembra. Passou um mês cuidando do bebê, com a autorização do conselho tutelar e da Polícia Militar quando o horror mais inesperado aconteceu.

Numa quarta-feira a noite, ela estava na escola de música com o marido, as duas filhas e Eduardo deitado no bebê-conforto no cantinho da sala. Acostumado com o ambiente que a família frequentava semanalmente, o bebê mantinha-se atento e concentrado aos movimentos e sons dos alunos nos instrumentos, nem choramingava.

A porta se abriu de repente, a sala silenciou e todos os olhares se voltaram para a entrada, de onde vinha o único som emitido naquele instante: a voz de um oficial de justiça acompanhado da polícia, dizendo que tinham ordem para levar o menino a um abrigo.

Ela alega que pediu para ir em casa buscar o leite sem lactose que ele tomava, roupas e fraldas, mas disseram que não dava tempo. Sem dar atenção aos seus apelos deram de costas levando Eduardo, agora choramingando. No dia seguinte, após o ocorrido recorreu a um advogado para que o bebê tivesse o direito de ir para o presídio com a mãe.

Acesse o primeiro capítulo da série Maternidade Algemada: grades que separam vínculos.

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