De 1º de janeiro a 7 de outubro de 2019, 42 feminicídios foram registrados pela Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina (SSP-SC), o mesmo número apurado nos doze meses de 2018. Um aumento de 23,5% em relação ao mesmo período do ano anterior. É o maior número de feminicídios registrado entre janeiro a outubro desde que o crime foi tipificado em 2015. No mesmo período de 2016, ano em que o estado registrou a maior alta da série histórica (54 feminicídios), foram totalizadas 40 mortes.

Tipificado pela Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015, que passou a considerá-lo crime hediondo, o feminicídio é o assassinato de mulheres por razão de gênero. São assim classificados quando ocorrem em contexto de violência doméstica e familiar, mas não somente, também resultam de situações de menosprezo ou discriminação à condição de mulher, casos em que são mais difíceis de serem identificados.

“O que mais vemos na conversa com os presos, autores de feminicídios, é que sempre se referem à mulher como se fosse algo deles, dizem ‘é a minha mulher’. Esse ‘a minha mulher’ vem muito forte para nós nesse discurso, mesmo elas estando mortas, em nenhum momento eles falam ‘minha ex-companheira’”, conta a delegada Patrícia Zimmermann D’Ávila, coordenadora das Delegacias de Polícia de Atendimento à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMIs).

O aumento nos casos em Santa Catarina não pode ser analisado isoladamente pois, como lembra a delegada, trata-se de um fenômeno nacional. Ainda não se tem informações sobre o número total de casos no país em 2019. “Está ocorrendo uma divulgação muito forte dos casos, ainda assim esses homens não estão se intimidando, pelo contrário, a impressão que dá é que estão se encorajando”, afirma. 

O contexto nacional de exacerbação do machismo, que autoriza essa cultura da violência contra a mulher, pode explicar o crescimento.

“O machismo está aflorando, muitos homens não aceitam o término do relacionamento, da vida em comum, e a autonomia das suas companheiras. O machismo está muito latente, que é a cultura de não aceitar o término do relacionamento, de controle abusivo da companheira”, explica.

O fenômeno não pode ser relacionado à impunidade, pelo menos em Santa Catarina, já que a grande maioria dos autores é presa preventivamente no curso do inquérito policial. Segundo informa a coordenadora, os inquéritos têm tramitação rápida e, a partir da prisão dos autores, são concluídos em dez dias. “Os autores não se intimidam com a possibilidade de prisão, e muitos inclusive tiram a própria vida”, analisa a delegada. 

O mais preocupante é a constatação pela delegada de que a quantidade de feminicídios seria maior caso não houvesse ações da polícia em representações por prisões preventivas de autores de violência, que oferecem risco à vítima, ainda durante o curso dos inquéritos. “Já ultrapassamos o número de preventivas do ano passado e isso está mantendo as mulheres vivas”, assegura. 

Na maioria dos casos, as mulheres já haviam relatado situações de violência doméstica, ainda que informalmente, a pessoas próximas. A coordenadora defende que as mulheres precisam estar alertas aos riscos de uma relação violenta, mesmo que as agressões sejam aparentemente sutis. “Não se trata de responsabilizar a vítima, mas a gente precisa sensibilizar essas mulheres para que tenham atenção redobrada, porque aquele companheiro que acham ser inofensivo, só um pouco ciumento, que às vezes perde o controle, pode ser o homem que tira a vida da mulher no momento de explosão da raiva. A mulher não percebe o risco, ela não vê que dorme com o inimigo”, relata.

É preciso pontuar que a lei abrange casos de violência por gênero para além do ambiente doméstico, o que exige investigação mais apurada. “Há casos de mulheres assassinadas em latrocínio ou envolvimento em crime organizado, por isso investigamos com olhar de gênero para ver se é caso de feminicídio. Há registro de um flagrante em que a mulher foi morta na condição de mulher e não como violência doméstica”.

Foto: Mídia Ninja

A maioria das vítimas de feminicídio em Santa Catarina é branca (85%), não terminou o ensino médio (75%) e tem média de idade de 33 anos, como apurou pesquisa divulgada pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), que traçou um perfil das 353 mulheres mortas pelos companheiros ou ex-parceiros entre 2011 e 2018. Cerca de 30% das mortes, o que representa a maioria, ocorreram nos finais de semana entre 20h e 24h. Mais de 60% das mortes resultaram de meios cruéis e não convencionais, como uso de facas, asfixia ou agressões como socos e chutes. O levantamento também identificou que 80% dos agressores são homens brancos com média de idade de 35 anos.

Fim de semana de três feminicídios

No último fim de semana, pelo menos três mulheres foram vítimas de feminicídio no estado, duas no Litoral Norte, em São Francisco do Sul e Barra Velha, e outra no Sul, em Forquilhinha. Vanessa Nunes da Silva, 23 anos, natural do estado do Maranhão, foi encontrada caída em um dos quartos da residência onde morava, às margens da Rodovia Josephina Lodetti Vassoler, no Bairro Vila Franca, em Forquilhinha. Segundo a equipe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), ela apresentava um corte e uma peça de roupa enrolada no pescoço, além de sinais de violência sexual.

De acordo com o jornal Forquilhinha Notícias, a vítima já estava morta quando foi encontrada, por duas colegas, uma delas com quem dividia a casa. Aos policiais, a colega que compartilhava a casa relatou ter ido a uma festa na noite de sábado (5), e ao retornar à casa na manhã de domingo, por volta de 8h, se deparou com a situação e chamou o vizinho.

Ilda Angioletti, 60 anos, proprietária de uma terraplanagem em Joinville, foi assassinada pelo namorado, na madrugada de domingo, em uma casa de praia no bairro Ervino, em São Francisco do Sul. De acordo com a Polícia Civil, ela foi morta com agressões e uma possível esganadura. O autor, que teria entrado em contato com a família logo após o crime e pedido para que chamasse a polícia, aguardou no local e foi preso. O delegado Rafaello Ross, responsável pelo caso, afirmou que os indícios apontam que o crime foi motivado por ciúmes.

Josiane Simer Frago Rodrigues, 24 anos, foi encontrada morta em uma rua de Barra Velha por volta da meia-noite do último sábado (5). Segundo afirmou o delegado responsável pela investigação, Eduardo Ferraz, a vítima teria sido atingida por golpes de faca de cozinha na região do tórax. O principal suspeito do crime é o ex-marido, 37 anos, com quem ela havia terminado o relacionamento há pouco tempo. Na casa, foram encontradas marcas de sangue e indícios de luta corporal. O delegado suspeita que ela tenha saído para buscar ajuda na rua, mas não resistiu aos ferimentos. Testemunhas relataram à polícia, que ela e o ex-marido teriam sido vistos em um bar momentos antes do crime. Josiane era natural do Espírito Santo e o suspeito de Minas Gerais. 

Perfil das vítimas no país

O ano de 2018 registrou aumento de 4% em relação ao número de feminicídios contabilizados no país em 2017, de 1151 para 1206 casos, segundo o Anuário Brasileira da Segurança Pública 2019, divulgado em setembro deste ano. Apesar disso, Santa Catarina, registrou queda de 20% no mesmo período analisado, de 52 para 42. 

O anuário apontou, por meio de análise dos microdados de 1.959 feminicídios de brasileiras, que em mais de 88,8% dos casos os algozes são companheiros ou ex-companheiros das vítimas, isso num universo de 51% dos casos em foi possível identificar a relação do autor com a vítima. Nos registros em que é possível identificar onde a mulher foi assassinada, em 65,6% das situações as mortes ocorreram dentro de casa.

O perfil de raça/cor das vítimas no país revela a maior vulnerabilidade das mulheres negras: elas são 61% das vítimas, contra 38,5% de brancas, 0,3% indígenas e 0,2% amarelas.  A questão racial pode ser ainda mais significativa, porque a Bahia, que concentra a maior proporção de população negra do país, não enviou os dados para a análise.

A relação entre vulnerabilidade social e a violência também pode ser percebida a partir da escolaridade: 70,7% das vítimas cursaram até o ensino fundamental, enquanto 7,3% têm ensino superior. O feminicídio é observado em todas as faixas etárias, mas significativamente maior entre mulheres em idade reprodutiva: 28,2% das vítimas tinham entre 20 e 29 anos, 29,8% tinham entre 30 e 39 anos e 18,5% tinham entre 40 e 49 anos quando foram mortas.

De acordo com a publicação Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres (2016), da ONU Mulheres, são condições estruturais das mortes violentas de mulheres por razões de gênero: o sentimento de posse, o controle sobre o corpo e autonomia da mulher, a limitação da emancipação profissional, econômica, social e intelectual da mulher, seu tratamento como objeto sexual e a manifestação de desprezo e ódio pela mulher.

“A relação próxima com o algoz é apontada por diversos estudos de vitimização como característica marcante das violências de gênero. Este aspecto relaciona-se com a amplitude característica da violência contra a mulher, que incide nas relações íntimas conjugais através da dependência patrimonial e violência psicológica, por exemplo. São traços desafiadores das políticas de prevenção e proteção, pois ocorrem no seio de relações das quais se espera segurança e confiança, e que comumente estão investidas de tabus por dizerem respeito à esfera doméstica e familiar”, apontaram as integrantes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública na análise sobre feminicídios no Brasil.

 

 

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