Procedimento involuntário soma-se ao impedimento da mãe de amamentar Suzi; há 16 dias a jovem aguarda resposta da justiça para amamentar a filha.

Não bastasse a separação compulsória de sua filha recém-nascida três horas após o parto, Andrielli Amanda dos Santos, 21 anos, foi esterilizada durante a cesariana, sem ao menos ser consultada ou, mesmo informada, antes do procedimento definitivo que a impedirá de gerar outros filhos biológicos. O caso ocorreu em 28 de julho, no Hospital Universitário, em Florianópolis, quando a mãe foi separada da recém-nascida por uma conselheira tutelar. Não havia decisão judicial no momento do acolhimento de urgência da criança.

Entenda o caso.

A jovem relata que, ao receber a informação, não entendeu que se tratava de uma violação dos seus direitos, até porque meses antes ela chegou a pensar sobre a possibilidade de realizar o procedimento. “Agora eu tenho mais consciência, eles deveriam ter me informado. É uma decisão que eu estava questionando já no finalzinho da gestação. É frustrante porque agora Suzi é a minha única esperança de ser mãe mesmo”.

Há quase 20 dias sem ver a bebê, Andrielli busca forças para lutar contra o sistema de justiça catarinense. Desde que saiu do hospital, naquele 31 de julho, está morando com o pai de Suzi e os avós paternos da bebê. Ela não teve coragem de voltar à casa onde vivia antes da gravidez, para não ter que se deparar com o enxoval da criança. Mesmo tentando manter a produção do leite materno, aos poucos sente que está secando.

“Me sinto vazia, tiraram a minha alma, o que me define é o vazio enorme”.

A esperança de, ao menos, visitar a filha e amamentá-la no abrigo, onde foi acolhida institucionalmente, está no recurso, protocolado nesta semana, para que o Tribunal reveja a decisão liminar da juíza Brigitte Remor de Souza May, da Vara da Infância e da Juventude da Comarca da Capital, que determinou a impossibilidade da mãe de amamentar a bebê. Marcelo Scherer da Silva, defensor público titular da 21ª Defensoria Pública da Capital, acompanha o processo e considera que a violação do direito da mãe de visitar a filha se destaca entre as ilegalidades do caso. 

O procedimento realizado sem a decisão informada da mulher se soma ao impedimento da amamentação após o parto, ambos considerados violência obstétrica pela Lei Estadual Nº 17.097, de 17 de janeiro de 2017. Nesta semana, a jovem prestou depoimento na 6ª Delegacia de Polícia da Capital que apura a denúncia de violência obstétrica contra o Conselho Tutelar e o Hospital. Enquadra-se como violência obstétrica também a realização de qualquer procedimento “sem, previamente, pedir permissão ou explicar, com palavras simples, a necessidade do que está sendo oferecido ou recomendado”.  

Manifestantes realizaram ato pelo direito de mãe e filha à amamentação, na última segunda-feira (9), no Largo da Alfândega, em Florianópolis/Foto: Paula Guimarães

De acordo com Patrícia Zimmermann D’ávila, coordenadora das Delegacias de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMIs), a violência obstétrica tem sido tema de capacitações da Polícia Civil. Segundo explica, cada conduta relacionada a esse tipo de violência pode configurar um ou mais crimes, podendo, por exemplo, ser enquadrada como lesão corporal, injúria, violência psicológica, entre outros.

“A Polícia Civil tem investido nesta questão da capacitação da violência obstétrica porque temos que enfrentar esse problema que muitas mulheres passam no momento do parto, um parto desumanizado, em que deixa de ser um momento de acolhimento, para ser conduta de prática de crime. Essa capacitação, começar a debater o tema, é para levar ao conhecimento das mulheres que o atendimento na hora do parto, pode ter algum tipo de dor, mas não atendimento desumanizado. Então quando caracteriza crime a polícia investiga”, afirma. 

A delegada garante que as denúncias não são feitas em vão. “Nossa grande preocupação é desmistificar essa questão que as pessoas dizem ‘não adianta falar [denunciar]’. Adianta sim, porque o parto tem que ser humanizado, ou seja, sem violência. Uma coisa é dor no parto, outra coisa é o atendimento com violação de direitos”. 

O Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) atua em conjunto com o grupo de trabalho “Mulheres” da Defensoria Pública da União (DPU) para responsabilizar envolvidos, incluindo o Estado, e reparar a vítima. Anne Teive, defensora pública e coordenadora do Núcleo, aguarda autorização formal de Andrielli para ter acesso ao prontuário médico do HU e estudar o caso.

“Vamos apurar e identificar exatamente quais foram os atos de violência obstétrica a que Andrielli foi submetida. Isso envolve colher o máximo de informações, a partir da análise dos documentos e depoimentos para verificar a possibilidade de responsabilização civil e uma reparação à Andrielli, indenização por danos morais e materiais. Então, o reconhecimento por parte do Estado que houve violência obstétrica e de que por ter sido vítima de ato ilícito, violento, ela tem direito à reparação”, assinala a defensora. 

Ainda se recuperando da cesariana, Andrielli esteve presente na manifestação/Foto: Kaionara dos Santos

Esterilização compulsória

Consultado pelo Portal Catarinas, o Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago (HU-UFSC/Ebserh) informou que não repassa Informações sobre procedimentos relacionados ao prontuário de pacientes, “respeitando o sigilo das informações e a privacidade do paciente”. Destacou que “os procedimentos relacionados à esterilização realizados pela Maternidade são pautados na segurança do paciente com base na Lei Nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996”.

No entanto, o direito ao planejamento familiar, disposto no Artigo 226º da Constituição Federal, parágrafo 7o, regulado pela Lei de Planejamento Familiar, Nº  9.263/96, garante como fundamental o consentimento da mulher, sem que haja coerção. “O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”, diz o texto constitucional.

Resposta do Hospital enviada por email ao Catarinas.


Emanuelle Goes, doutora em Saúde Pública (ISC/UFBA), que atua no Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) da Fiocruz, reforça que a esterilização involuntária de Andrielli viola princípios da lei citada pelo Hospital, além de direitos fundamentais e reprodutivos que a abarcam, principalmente no que diz respeito à necessidade do consentimento da paciente para a realização de qualquer procedimento. 

Ainda de acordo com a Lei sobre Planejamento Familiar, é vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto. Mesmo nos casos de comprovada necessidade que justifique a exceção, a lei garante decisão informada da paciente em seu artigo 10º. “É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes”.

A pesquisadora em racismo e direitos reprodutivos lembra que a esterilização no Brasil tem a marca de uma política eugenista, de controle de natalidade de populações negras, indígenas e de pessoas em situação de pobreza. Nos anos 1970 e 1980, o país foi palco de uma esterilização em massa, como denunciou a chamada CPI da Esterilização, instalada em 1991.

“Na época, o movimento de mulheres negras assumiu essa agenda dos direitos reprodutivos, com foco na discussão da esterilização, denunciando-a como meio de controle de natalidade de uma política eugenista”, contextualiza Goes. 

Mesmo com a lei de planejamento familiar, mulheres em situação de rua, em contexto de prisão, vivendo com HIV e prostitutas têm sido alvos desse tipo de política. A esterilização compulsória de Janaina Aparecida Quirino, no interior de São Paulo, em 2018, é emblemática em relação à essa recorrência. Acatando pedido do promotor da Comarca de Mococa, o juiz decidiu que o procedimento deveria ser realizado mesmo “contra a sua vontade” por ela ser pobre, dependente de drogas e já ter cinco filhos de quem não podia cuidar.

“Temos observado novas performances do uso da esterilização involuntária. As práticas racistas do controle de natalidade por meio da esterilização ainda ocorrem, como se encaixa o caso de Andrielli. É uma ocorrência profunda e grave no que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos”, afirma a pesquisadora da Fiocruz.  

Para a doutora, a falta de acesso à ampla oferta de métodos contraceptivos leva mulheres jovens, como Andrielli, a acreditar que a esterilização é o único meio de solucionar o planejamento familiar e, com isso, encerram a reprodução. O que ganha verniz de escolha na prática trata-se de coerção.

“Quando a gente pensa que uma jovem de 21 anos já está esterilizada, o que significa tudo isso dentro dessa ausência de direitos reprodutivos? Angela Davis fala disso em um dos seus livros, que se trata de uma coerção porque as mulheres são empurradas para a realização da esterilização pela ausência de tudo que está em volta disso”.

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Registro dos poucos minutos que Suzi ficou no colo da mãe, antes de ser levada pelo Conselho Tutelar/Foto: arquivo pessoal.

Motivos de saúde não justificam esterilização compulsória

Aos 21 anos, Andrielli passou por quatro cesarianas, mas isso não a impedia de engravidar novamente, conforme garante a médica ginecologista e obstetra, Melania Amorim.

“Iteratividade, isto é, duas ou mais cesáreas, não contraindica engravidar nem é indicação de ligar as trompas. Existem riscos à saúde com cesarianas repetidas, é óbvio. Mas só a mulher pode decidir quais riscos quer correr. Eu não posso obrigar ninguém a ligar as trompas. A medida parece mais higienista”, afirmou.

Segundo explica a médica, a legislação não permite a realização de laqueadura, mesmo em risco de vida, sem que haja autorização da mulher. “Ela pode escolher correr o risco e isso só compete a ela. É como aborto em caso de enorme risco de vida materno. Já encontrei pacientes que não quiseram interromper e assinaram termo dizendo que não queriam. Laqueadura, então, nem se fala”, colocou.

Mesmo mulheres que tiveram uma ruptura uterina podem engravidar no futuro se desejarem, por isso se programa uma cesariana eletiva. “’Útero fino’ é um achado muito subjetivo e não há nenhuma evidência de que o achado de útero fino em uma cesárea aumente o risco de ruptura uterina em uma gravidez futura ou, mais ainda, contraindique uma gravidez futura”, avalia sobre a justificativa dada pela equipe médica.

Andrielli engravidou pela primeira vez aos 13 anos, o que, segundo a lei, caracteriza gestação resultante de estupro de vulnerável, situação que garante o direito ao aborto legal, porém à época, não houve orientação para a jovem. Sua segunda gravidez ocorreu aos 16, quando teve que lidar com o falecimento da filha após o nascimento, e a terceira aos 18. A jovem não gosta de falar dessas perdas que lhe causam ainda mais dor.

*Atualização às 13h50 de 13 de agosto de 2021.

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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