Há 14 anos, movimentos indígenas se reúnem, em Brasília, para uma semana de manifestações políticas e culturais no “Acampamento Terra Livre”. Não por acaso, a atividade acontece em abril, mês que comemora o “descobrimento do Brasil”. Com mais de três mil indígenas, a 14ª edição, que segue até a próxima sexta-feira (29), já é considerada a maior mobilização indígena dos últimos tempos. Este ano foi marcado também por forte ofensiva policial, em frente ao Congresso Nacional, com disparo de bombas de gás, tiros de bala de borracha e uso de spray de pimenta. Entre os manifestantes estavam centenas de crianças, idosos e mulheres.

A ação violenta ocorreu no momento em que manifestantes espalhavam 200 caixões no espelho de água do Congresso, em protesto ao assassinato de líderes indígenas. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 54 indígenas foram assassinados em todo o país, em 2015, por causa de conflitos de Terra. Os movimentos protestam especialmente contra a paralisação das demarcações e contra a tese do “Marco Temporal” (pela qual só devem ser consideradas Terras Indígenas as áreas que estavam de posse dessas comunidades na data de promulgação da Constituição).

Kerexu Yxapyry, liderança feminina da Terra Guarani do Morro dos Cavalos, em Palhoça, está entre os 26 líderes da comunidade que participam da atividade. Em entrevista por telefone ao Portal Catarinas, ela falou sobre pautas históricas, criticou a falta de diálogo do governo brasileiro com os movimentos indígenas e denunciou a tentativa do governo de Santa Catarina de anular a demarcação da Terra pertencente ao seu povo. Formada em Gestão Ambiental pela UFSC, Kerexu foi cacica da Terra Guarani até o início do ano passado.

Mulheres retomam papéis protagonistas na cultura indígena

Como ocorre a participação dos movimentos nesse acampamento político?
O acampamento reúne organizações indígenas de base. Como sempre, luta pela demarcação de terra. Neste ano, protestamos também contra o golpe que esse governo representa. A gente sempre esteve na luta. Lutamos agora para garantir direito já conquistado na Constituição Federal de 1988.

Vocês fizeram um ato fúnebre. Houve ofensiva da polícia exatamente enquanto simbolizavam essas mortes. Como foi esse momento?
Queremos mostrar aos governantes como indígenas vêm sendo massacrados e exterminados, tanto pelas políticas quanto pelas mortes de representantes das bases. Todo ano há massacres de lideranças em Mato Grosso do Sul. Levamos caixões para representar a morte dessas lideranças. Todo o protesto já tinha sido articulado com deputados. Foi muito estranho, porque quando chegamos não havia policiais. O ato ocorreu de forma pacífica. Quando estavam todos bem próximos, começaram a usar bomba contra a multidão. Foi bem tenso, muitas mulheres com crianças no colo foram atingidas por bombas de gás, tiros de bala de borracha e spray de pimenta. Várias pessoas passaram mal.

Qual a sua opinião sobre a receptividade do governo em relação às pautas dos movimentos sociais?
Retrocedemos bastante. Vivemos um período pior do que na ditadura, porque antes não tínhamos legislação que garantisse direito. Hoje temos, porém a Constituição de 1988 não está sendo cumprida. Vejo no governo uma tremenda covardia, porque está fazendo tudo sem diálogo com os movimentos sociais. É covarde porque coloca policias para atacar movimentos. Não quer ouvir as demandas dos povos, tanto que está no poder porque deu o golpe. Essa covardia e não atenção à sociedade é porque ele teme nossa força. Sabe que se a lei for cumprida, ele não ficará no poder por muito tempo. Por isso é que ele precisa intimidar toda a população que reivindica seus direitos, não só movimentos indígenas, como todos os outros que estão nas ruas. Ele tem medo.

Foto: movimento indígena

Por que você afirma que hoje está pior do que na época da ditadura em relação ao não cumprimento de leis (antes não existentes)?
A Constituição, em seu artigo 231, trata do nosso modo de organização, crença, cultura e todos os nossos direitos. São direitos garantidos. Todos que estão no poder precisam, primeiro, cumprir a lei para entender cada organização e isso não está acontecendo. Estamos lutando, hoje, para assegurar direitos garantidos. O governo atual está totalmente fora da lei. Não está ouvindo, está fazendo por conta para tratorar todo movimento que chega à porta. O movimento indígena não tem partido. Muitas vezes as pessoas se enganam que o movimento está apoiando políticos do PT. O movimento está em busca do direito à demarcação das terras, independente de quem está no poder. É preciso ter diálogo com movimentos para cumprir a lei e é só isso que a gente reivindica: o cumprimento da lei, independentemente de partido ou pessoa.

Qual o sentimento em relação às mortes recentes de lideres indígenas? Vocês se sentem ameaçados de alguma forma?
Carrego dois sentimentos. Há um retrocesso, mas o massacre sempre existiu, começando em 1500 com a colonização e a catequização. Hoje, a forma mudou, mas o massacre continua. Há um sentimento de retrocesso ao ver que um direito garantido na Constituição não é respeitado. Nossos guerreiros na década de 80 lutaram para garantir nossos direitos. E hoje precisam lutar para assegurar. Por outro lado, a gente se fortalece como movimento. As lideranças estão se unindo como nos anos 80 para a luta. Hoje, falamos à altura e com a mesma linguagem de qualquer político. Eles se sentem ameaçados com esse movimento. Eles estão errados se não compreendem como direitos, qualquer cidadão digno vai saber o que é certo e errado. Nós lutamos nesse conceito, na perspectiva da luta com a consciência, o sentimento e o direito de cada um. Estamos mais fortalecidos e com a certeza de que não vamos deixar que nada aconteça. Infelizmente, lideranças acabam se sacrificando para garantir nossos direitos.

Qual a principal reivindicação da luta indígena?
A demarcação das terras. Com esse governo, sofremos um processo de paralisação das demarcações. Percebemos como o governo está equivocado em suas políticas. Muitas terras já demarcadas estão passando por processo de anulação das portarias declaratórias. Temos várias audiências no STF, onde estão com vários relatores os processos de demarcação de terra, inclusive do Morro dos Cavalos. Em 2014, o governador de Santa Catarina, Raimundo Colombo, pediu anulação da portaria declaratória da terra indígena do Morro dos Cavalos. Não temo a decisão, já falei ao ministro. Todo mundo sabe que a Terra indígena é Terra tradicional guarani, se ele estiver negando é porque é contra mesmo, não é porque tenha algo que está sendo contraditório ao direito. Estamos bem tranquilos quanto a isso.

Por que o governo de SC pede a anulação da demarcação?
O governo usa a duplicação da BR-101 como arma contra nós. Sempre se mete nessa questão da duplicação. Entrou com ação no STF para tratar da duplicação, mas sabemos que há outros interesses imobiliários, principalmente turísticos. Só não conseguem construir um hotel resort porque tem terra indígena. Sem falar na ocupação do parque da Serra do Tabuleiro, um verdadeiro crime ambiental em torno da terra indígena. Já foi feito estudo de impacto sobre a terra indígena pelo DNIT, FUNAI e outros órgãos que propõem a construção de dois túneis no Morro dos Cavalos. Em 2005, houve decisão do TCU favorável à construção dos túneis para proteção da fauna, flora e povos indígenas. Isso está mais que resolvido. O governo usa essa questão da Terra indígena para duplicar a rodovia, sem a construção dos túneis, e para que a gente saia dali. Sofremos também pela grande mídia, formada por veículos de manobra do governo. Em nenhum momento os veículos ligados à RBS e à Globo dialogaram com indígenas, só espalham informações para a sociedade. Se pesquisarem, desde os moradores mais velhos até estudos científicos comprovados, vão saber que o local sempre foi Terra indígena. A mídia insiste em dizer que quem mora ali não é dali. Criam um “Marco Temporal” estabelecendo que até 88, ano da Constituição Federal, não havia indígena no Morro dos Cavalos.

Acompanhe toda a cobertura sobre o acampamento no portal da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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