Vou falar aqui de brechas, de criar brechas.

Em 2016  decidi colocar minhas composições no mundo acompanhada pelos músicos Tom Cykman, Mateus Romero e pela musicista Carol Miranda após minha participação no Sonora Ciclo Internacional de Compositoras SC. Os três, que gostaram das minhas loucuras musicais, e eu, que tomei coragem e gosto pelo meu trabalho como compositora, montamos um show com quinze composições minhas.

Como qualquer compositora ou compositor eu tenho um desejo insaciável de mostrar minhas musicas e de experimentar constantemente esse lugar de troca que acontece durante a performance de composições que são pedaços de mim.

Em janeiro deste ano cantei uma pedra pro Trio Maravilha: quero tocar em Minas Gerais. Meu Estado natal, que me gestou enquanto percussionista, brincante e todas as outras partes mineiras que me constituem (orapronobis e queijo), de fato era um destino que as trocas aconteceriam fervilhantes pra mim.

Mas como é que faz pra sair da ilha? Como sustentar um projeto de musica autoral em tempos de ausência quase completa de apoiadores, editais, políticas e incentivo?

Como se o vento me ouvisse (e ele ouve de fato) recebi um convite para dar um curso de música e cortejo de rua no Vale do Jequitinhonha, em que não haveriam recursos para me pagar, mas estavam aberto a trocas.

Já perseguindo meus desejos, eu em troca do curso propus a produção, por parte dos proponentes, de um show meu com o Trio (transporte, alimentação e produção do show). Eles toparam. Falei com meu time: vou tentar levar vocês pra Minas Gerais, vocês encaram ir comigo sem lucros monetários? Trocando trabalho por trabalho pra trabalhar? Eles toparam.

 O Pré!
A partir daí iniciamos, eu e Rena Costa nossa produtora, um trabalho intenso pelos 3 meses que se sucederam, de criar redes com pessoas, projetos, editais e espaços que fomentam a cena autoral independente em Minas Gerais. Nosso veículo foram as redes sociais e amigos e amigas minhas que moravam em Minas ou conheciam amigos de amigos de amigos de amigos…. No processo, portas, paredes, muros fechados, mensagens visualizadas e não respondidas, nãos.. mas janelas e ladrilhos se abriram.

Assim que fechamos o primeiro show compramos a passagem de ida, que foram compradas a perder de vista no cartão, contando com o cachê de quatro shows que fechamos em Florianópolis no mês que antecedia a viagem. A de volta foi comprada uma semana antes de embarcarmos, quando tivemos a confirmação final do último show, em agosto.

Os shows para financiar as passagens aconteceram na Casa de Noca, no Espaço Conexão, no Porto das Artes e na festa Despacho!.

No dia do embarque tínhamos confirmados dois shows em Belo Horizonte, um em Mariana, um em Viçosa e o ultimo que aconteceria em Juiz de Fora.

Nesses trajetos contamos com a produção de Rena, que nos acompanhou por Minas, e algumas produções locais: em Belo Horizonte eu fiz a produção local junto com amigos e familiares ; em Mariana contamos com a produção de Michela Oliveira da Truá Produções e também de Ana Lana Gastelois do Espaço Sagarana onde nos apresentamos; em Viçosa contamos com a articulação de amigos meus e da E Ventos Produtora; em Juiz de Fora construímos uma parceria com a banda Matilda, que eu já conhecia de outros carnavais, e produção de Maria Elisa com ajuda de amigos e amigas de lá que nos receberam. Para viabilizar uma boa divulgação no Estado, decidi também investir em uma assessoria de imprensa, realizada pela assessora Naiara Rodrigues Rocha.

Nossa volta aconteceria pelo Rio de Janeiro, mais ainda com o trajeto incerto.

Os shows
Em Belo Horizonte o primeiro show foi no Suricato Bar, um espaço muito especial, gerido por Marta Soares, uma associação que promove a inserção de sujeitos com sofrimento mental através da culinária e da produção de artesanato, como mosaicos, marcenaria e costura. O show foi lindo e o espaço muito acolhedor.

O segundo show aconteceu no SESC Palladium, no Teatro de Bolso. Tivemos que contratar um técnico de som e Rena Costa fez a luz. Os técnicos do teatro muito atenciosos e toda a qualidade técnica do espaço contribuiu pro show ser incrível. Infelizmente, ocorreu um erro de divulgação e não saímos na programação mensal do teatro, rasteira inesperada na produção.

O Sagarana café-teatro foi um espaço muito especial dentro da turnê. Sagarana foi criado pela escritora, educadora e arquiteta Dr. Maria Magdalena Lana Gastelois presentifica a artisticidade no espaço, gerido por Ana filha de “Magdá”. Foi revigorante tocar lá e passar o dia na casa construída e gerida por duas artistas mulheres, mãe e filha, no caminho da Zona da Mata mineira. No show conhecemos uma grande fotógrafa de Uberlândia, que trabalha com produção audiovisual e estava dando curso no festival de inverno de Ouro Preto, Bruna Freitas. Ela descobriu que nos apresentaríamos lá e foi pra conhecer o trabalho. Das pérolas que brotam no caminho.

Parcerias vaidosas na esquina (mas não é o clube!)
Durante a estadia em Belo Horizonte, tentamos insistentemente fechar outro show com projetos locais, mas encontrei uma cena musical construída muito dentro de “amizades” e o famoso “QI”. Tive o feliz encontro com o projeto do músico Marcos Sandália e Meia, através de redes de amigos que nos conectaram. Mandei mensagem pra ele em menos de dois minutos de conversa já marcamos um café em sua casa. Da nossa primeira reunião surgiu o AFETE-SE, um evento que acolheria uma concepção de música que nos unia,  uma música sobre a “poética cotidiana”, uma “pílula para dias difíceis”. Fizemos a produção de fotos, flyer, teasers e conseguimos equipamentos de som. Faltava o local.

Entramos em contato com diversos espaços em Belo Horizonte que recebiam projetos musicais, sendo que muitos demandaram que deveríamos mandar a proposta com mais de um mês de antecedência para ser avaliada, julgada e burocratizada. Em uma das tentativas, passei uma hora no telefone tentando convencer o dono de um espaço que nós faríamos toda a produção, divulgação, abríamos mão da bilheteria, abrindo assim brechas para favorecer o trabalho dele e ao final recebi a proposta de pagar um aluguel porque ele “nem era meu amigo ainda”. Nem era meu amigo ainda?

Desliguei o telefone, fui tomar um banho e compus o “Samba da Porca”. No dia seguinte escrevi pro Marcos e disse: amigo, fiz um samba, quero fazer um vídeo contigo tocando e cantando comigo hoje, topa? Ele disse: bora! Eu disse: Vamos tocar num bar aí perto da sua casa, no Jaraguá, topa? Nos encontramos no bar do Fabiano, esquina da Rua Calunga com Isabel Bueno.

Nesse processo de articulação com Marcos, Rena descobriu o espaço Avesso que recebe musica autoral em Ipatinga. Ela entrou em contato e, com apoio de Marcos e Rejane que gerem o espaço e nos receberam em sua casa, fomos a Ipatinga no Vale do Aço Mineiro. Como nas demais cidades que estivemos, nosso transporte e parte da produção foram custeados pelo cachê que íamos recebendo, trocando trabalho por trabalho.

 

No retorno a Belo Horizonte, antes de seguir viagem para Viçosa e Juiz de Fora, decidimos fazer o AFETE-SE mesmo sem espaço. Nós decidimos ocupar o espaço virtual, que muitas pessoas teriam acesso, a internet. Marcos sugeriu de fazermos um encontro em sua casa e transmitir pela internet ao vivo. Convidados alguns amigos e lançamos uma promoção na internet para poucos sortudos que assistiriam presencialmente. O evento está disponível ainda no facebook.

Em Viçosa, cidade em que me formei em Ciências Biológicas (tema de outra resenha..rsrs), muitas amigas e amigos ainda estavam por lá e neste ano já realizavam produções independentes. Eles se uniram a E ventos Produções, uma produtora que já atuava na cidade, e conseguiram bravamente realizar a produção do meu show no anfiteatro da Universidade Federal de Viçosa.

Além do show, a E ventos Produtora se articulou com o programa Esquisito Radio Clube, conduzido por Breno Longh e Albert Ferreira, que vai ao ar na TV Viçosa e no canal do projeto no youtube, no qual gravamos um programa bem divertido com quatro musicas autorais minhas, um bate papo e uma versão cover escolhida por mim. O programa está previsto para ir ao ar em setembro.

 

De lá, já no dia seguinte seguimos para Juiz e Fora, nosso ultimo show da turnê. Um grande amigo, Gustavo Soldati, nos recebeu e somou a produção de Maria Elisa, produtora das Matildas. O show integrou as comemorações de um ano do espaço Arteria, local que integra arte educação e eventos culturais na cidade.

Nosso trajeto final foi construído na passagem de Viçosa a Juiz de Fora, quando contatei uma grande amiga, Pri, que cursa doutorado em teatro na capital fluminense e decidiu nos receber e nos despachar de volta a ilha da magia.

 

Além da grande experiência e de todo aprendizado soma-se a autonomia de se criar brechas.

De fato, espero não trocar apenas trabalho por trabalho para trabalhar. Esse é um ponto muito importante quando se fala de arte, seja na musica ou em outras áreas. Tenho preguiça da “ilusão do mainstream”. Pra mim trabalho de compositora e musicista não é mais nem menos que o trabalho de uma professora ou de uma operária.  Estamos todas pagando impostos e sofrendo golpes do judiciário no Brasil não é mesmo?

Porém, no meio disso tudo, se faz necessário abrir caminho para por a cara no sol. Essa abertura é um local de disputa, de persistência para a construção de um chão palpável pras novas arteirices como a minha.

A intenção aqui é dar as curvas desse percalço recente por Minas Gerais pros meus e minhas pares arteir@s: que se arrisquem inventando estruturas ainda invisíveis e perseguindo seus desejos.

Sempre Viva Brota caminho sem volta do se arriscar.

Fotos e vídeos : Rena Costa

* Letícia é compositora, instrumentista e brincante. Possui Mestrado em Antropologia Social, tem em sua trajetória aprendizados junto a grupos tradicionais brasileiros e em sua prática artística trabalha a criação e o ensino de musica e dança. Atualmente possui o projeto de musicas tradicionais e composições autorais Corda de Amarrar Vento, o projeto de performance e criação de rua Duo Im Risco e seu projeto autoral acompanhado pelo Trio Macela Nova, com quem viajou por Minas Gerais na turnê Sempre Viva.

 

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