A proposta de reforma da Previdência apresentada por Michel Temer (PEC 287/2016) e seus aliados nos coloca diante da alternativa entre um sistema de Previdência Social que, desde a Constituição de 1988, é orientado para corrigir as desigualdades existentes no mercado de trabalho e um sistema que, caso se consolide, vai refletir essas desigualdades em vez de amparar quem se torna mais vulnerável devido a elas. Alguns grupos são especialmente atingidos pelas mudanças propostas: as mulheres em todos os casos, os trabalhadores rurais e a camada mais pobre da população.

A PEC 287 define 65 anos como idade mínima para aposentadoria e elimina as distinções hoje existentes na nossa legislação entre mulheres e homens e, também, entre trabalhadores/as urbanos/as e rurais. Hoje a idade mínima para a aposentadoria é de 65 anos para os homens e 60 para as mulheres. Ela é diferenciada para o trabalho rural, em que a idade mínima é hoje de 60 anos para os homens e de 55 para as mulheres. Além disso, o tempo mínimo de contribuição é hoje de 15 anos, mas a proposta é de que passe a ser de 25 anos. No caso de trabalhadoras e trabalhadores rurais, também se passa a exigir contribuição individualizada mensal, rompendo com o tratamento diferenciado garantido para a agricultura familiar, na qual o rendimento é baixo e está sujeito aos ritmos sazonais de produção e venda dos produtos.

Com a Constituição de 1988, o Brasil assumiu uma perspectiva da seguridade que ultrapassa a definição do benefício como contrapartida da contribuição. Por isso, situações especiais e as assimetrias no acesso ao trabalho formal ao longo da vida, como no caso do trabalho na agricultura familiar e da carga ampliada de trabalho das mulheres devido às tarefas desempenhadas no cotidiano doméstico, correspondem a sistemas de contribuição e acesso à aposentadoria diferenciados.

Para as pessoas mais pobres, aquelas com renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo, a legislação atual garante, a partir dos 65 anos, uma renda de um salário mínimo. É a condição especial estabelecida pela Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), correspondente ao Benefício de Prestação Continuada de Assistência Social (BPC). A PEC 287 prevê mudanças também aqui. Nesse caso, a idade é diferenciada, mas para mais, e justamente entre as pessoas mais pobres. Caso a proposta de Temer seja aprovada, o benefício será concedido apenas a partir dos 70 anos e será desvinculado do salário mínimo. Na prática, considerando-se o fato de que a longevidade é menor entre os mais pobres, a medida tem o efeito de anular esse direito e o compromisso com um mínimo (estamos falando de um salário) de bem-estar e dignidade na velhice para aquelas pessoas que já tiveram condições desfavoráveis ao longo da vida. Trata-se de um contingente significativo da população brasileira e de uma realidade na qual há também um componente de gênero.

Segundo dados da PNAD/IBGE 2014, em 2013 25,4% das pessoas (21,5% dos homens e 30,6% das mulheres) tiveram rendimento médio mensal proveniente do trabalho inferior a um salário mínimo.

Nos casos que envolvem equiparação de idade e maiores exigências na contribuição, que incluem mulheres e trabalhadoras/es do campo, a reforma vai dificultar o acesso ao sistema de previdência. Trata-se justamente dos grupos com menor renda e maiores taxas de informalidade no trabalho. A ampliação do acesso à previdência entre trabalhadoras e trabalhadores rurais foi responsável pela redução da pobreza no campo, expondo o caráter distributivo da legislação atual (Galiza e Vasconcelos, 2016). Por outro lado, os dados do IBGE disponíveis mostram que no campo as pessoas começam a trabalhar mais cedo do que na cidade, o trabalho infantil persiste em índices bastante superiores aos das áreas urbanas e há muitos indícios de que as condições de trabalho fragilizam mais a saúde ao longo da vida e reduzem a longevidade (ANFIP/DIEESE, 2017, pp. 155-6).

Vale lembrar que mesmo quem possa acreditar na aposta do governo na privatização do setor precisa levar em conta que ela retira o “cobertor” justamente de quem tem menores condições para aderir à seguridade privada, para onde o projeto de Temer e seus aliados orientam brasileiras e brasileiros caso a PEC 287 seja aprovada. Trata-se, assim, de uma reforma que aposta na privatização como alternativa para quem pode trazer lucros para as empresas de seguro e, no mais, se descompromete com as vidas da ampla maioria, que ficará de fora desse mercado.

Quanto às mulheres especificamente, ao equiparar a idade mínima de aposentadoria à dos homens e instituir os 25 anos de contribuição, a proposta rompe não apenas com o compromisso constitucional de que a seguridade compensa as desigualdades, em vez de acentuá-las. Ela rompe também com a realidade das condições de trabalho das mulheres, aplicando regras iguais a pessoas em situações muito diferentes. É esse o ponto de que passo a tratar.

Começo pelas justificativas que têm sido apresentadas para a equiparação.

“as mulheres vivem mais do que os homens”
De fato, a expectativa de vida ao nascer apresenta um gap em favor das mulheres, que é hoje de cerca de 7 anos. Mas como um fator importante nesse gap no Brasil são as altas taxas de mortalidade por assassinato entre os homens jovens (e negros), esse gap é reduzido para três anos quando se considera a sobrevida aos 65 anos, segundo dados do IBGE (IPEA, 2017). Além disso, o sistema de previdência não pode servir para punir quem vive mais. Pactuamos na Constituição de 1988 um sistema que tem como objetivo proteger e compensar injustiças.

em países mais ricos que o Brasil, a legislação equipara a idade para aposentadoria de mulheres e homens”
Isso é verdade em especial para os países em que têm sido implementadas políticas que reduziram as desigualdades de gênero no mercado de trabalho, com maior responsabilidade social pelo cuidado com crianças e idosos e legislação e políticas públicas que permitem licenças de mulheres e homens para o cuidado, mas colaboram para a reinserção no trabalho (Esping-Andersen, 2009). O ponto é que a equiparação é uma realidade presente sobretudo nos países em que houve ação do Estado para reduzir as desigualdades entre homens e mulheres na renda, no acesso a ocupações e na empregabilidade, refletindo, portanto, um mercado de trabalho menos assimétrico, em vez de acentuá-lo (cf. IPEA, 2017; ANFIP/DIEESE, 2017). É uma realidade menos presente na América Latina e aqui, quando ocorre, os equipara em patamares de idade mais baixos do que os 65 anos pretendidos.

Passo agora aos pontos que considero mais relevantes sobre a posição desigual das mulheres nas relações de trabalho no Brasil e seus efeitos, antecipando que uma e outros são desconsiderados pela PEC 287:

As mulheres ganham menos e têm menor acesso a trabalho remunerado do que os homens.
As mulheres recebem hoje cerca de 74% da renda média dos homens nas mesmas ocupações, embora o acesso à educação formal seja maior entre elas do que entre eles. Isso ocorre porque somos ainda uma sociedade fortemente organizada por uma divisão convencional dos papeis. Enquanto o exercício das tarefas domésticas é realizado prioritariamente pelas mulheres, que são também as principais responsáveis pelo cuidado cotidiano com crianças e idosos, os homens têm tempo liberados dessas funções para o exercício de trabalho remunerado. As desigualdades permanecem mesmo nos grupos mais escolarizados porque essas práticas implicam a priorização das carreiras deles e porque o “teto de vidro” para as mulheres, isto é, o limite diferenciado que se estabelece para as suas carreiras a ponto de a renda delas ser menor até mesmo em carreiras bastante pradonizadas, como as carreiras no Judiciário, é feito também do sexismo no cotidiano das relações de trabalho. A divisão sexual do trabalho pode ser considerada o fator fundamental nos filtros de gênero no acesso ao trabalho remunerado. É no período da vida em que têm filhos pequenos que as mulheres têm menos acesso a renda, a emprego e a trabalho formal, o que poderia ser no mínimo amenizado com maior oferta de vagas em creches públicas integrais de qualidade, fator central na mudança desse quadro nos países nos quais há menor desigualdade entre mulheres e homens no mercado de trabalho (os países escandinavos) e em muitos dos países nos quais houve equiparação das idades de mulheres e homens para aposentadoria. Embora o acesso das mulheres ao trabalho remunerado tenha se ampliado muito nas últimas décadas do século XX em todo o mundo, no Brasil desde 2005 a participação delas na força de trabalho vem se estabilizando em torno de 56%, enquanto a participação dos homens é de cerca de 80%. A taxa de desemprego entre elas também é maior do que entre eles em quase 4 pontos percentuais (em 2015, essa taxa foi de 7,7% para eles e 11,6% para elas).

As mulheres, sobretudo as mulheres negras, têm menor acesso ao trabalho formal.
O acesso a trabalho formal é um ponto central para essa discussão. Quem está no mercado informal tem, já pelas regras atuais, menores chances de acesso ao sistema de previdência. As mulheres trabalham menos com carteira assinada do que os homens, o que está diretamente ligado ao seu trabalho como mães e à divisão do trabalho doméstico. Mas o que gostaria de ressaltar aqui é que seu rendimento no trabalho informal é significativamente menor do que o dos homens quando também estão na informalidade. Em 2013, elas receberam em média 65% do salário deles no mercado informal e 75% no formal, segundo os dados da PNAD-IBGE de 2014. Reunidas essas assimetrias, entendemos porque as mulheres são hoje a maioria entre as pessoas que se aposentam por idade (em vez de por tempo de contribuição) e seu tempo total de contribuição é menor do que o dos homens.

Nesse ponto, é importante ressaltar que a fronteira entre trabalho formal e informal tem um caráter racial no Brasil. Quase metade da população negra (pretos mais pardos) exercia trabalho informal em 2013, contra 34,7% da população branca, ainda segundo os dados da PNAD. As mulheres negras são o segmento da população com menor acesso ao trabalho formal. São também a faixa da população com menor renda média. As famílias sob sua chefia são aquelas que têm menor renda média se comparadas a famílias chefiadas por homens brancos, mulheres brancas ou homens negros. Elas são, assim, também aquelas que têm menores chances de contratar serviços privados para compensar as demandas da vida doméstica, o que torna suas jornadas de trabalho não apenas menos protegidas e menos remuneradas, mas também mais longas.

As mulheres trabalham mais do que os homens.
Isso se deve ao fato de que são elas quem realiza a fatia mais larga do trabalho não-remunerado de todos os dias nas casas, como o preparo de alimentos, a limpeza da casa e das roupas, o cuidado com as crianças e os idosos. Embora o número de horas dedicado pelas mulheres a esse tipo de atividade tenha diminuído com o maior acesso a energia elétrica, saneamento (água e esgoto) e eletrodomésticos, os homens não aumentaram seu engajamento com essas atividades. Em 2013, entre as mulheres ocupadas em áreas urbanas, 90% realizavam trabalho doméstico, enquanto 52% dos homens o faziam; nas áreas rurais essa distância aumenta, com 96% delas e 48% deles engajados no trabalho doméstico cotidiano. Entre as pessoas que disseram realizar trabalho doméstico, elas dedicavam 20,3 horas semanas e eles 10 horas semanais a esse trabalho nas áreas urbanas; nas rurais, esse tempo sobre para 26,1 horas semanais entre elas e entre eles permanece semelhante, em 10,3. Assim, pode-se interpretar que essa diferença diz respeito menos ao engajamento masculino no trabalho doméstico nas áreas urbanas do que a mais facilidades, como eletrodomésticos e saneamento. É por isso que quando se observa a jornada total de trabalho se constata que a das mulheres ultrapassa a dos homens em cerca de 5 horas semanais, segundo dados da PNAD-IBGE 2014. Grosso modo, isso significa 20 horas de trabalho a mais a cada mês.  Vale observar que de fato o tempo de trabalho de cuidado com as crianças, uma das tarefas predominantemente femininas no Brasil, diminuiu com a redução da taxa de natalidade. Mas a ampliação da expectativa de vida implica que pais e outros parentes idosos precisam de cuidado. Dada a precariedade dos equipamentos públicos de cuidado e a divisão sexual do trabalho doméstico, isso significa que há uma carga maior de trabalho para as mulheres, que deve aumentar – mas esse ponto não é considerado quando as projeções são feitas pensando apenas na conta contribuição-benefício.

Antes de finalizar, gostaria de ressaltar que além de produzirem mulheres cansadas e mais vulneráveis, as assimetrias no acesso a renda e a tempo de que acabo de falar são também um componente importante nas barreiras ao acesso das mulheres à política e na reprodução de uma política masculina (Biroli, 2016). É nessa política largamente masculina que, mais uma vez, se tomam decisões que podem reduzir a proteção e a dignidade das mulheres e de familiares de quem elas são as principais cuidadoras.

Também gostaria de destacar que o problema não está nas demandas domésticas, que são parte da vida. Todos precisamos nos alimentar, como todos precisamos de cuidados na infância e na velhice, e alguns de nós de cuidados maiores ao longo da vida devido a doenças crônicas ou necessidades especiais. A questão que se coloca é qual o modelo de sociedade no qual lidamos com essas demandas. Dito de outra forma, a pergunta é “quem se responsabiliza por elas?”. Se temos um modelo privatista, que se acentua quando o Estado recua na responsabilidade pública por prover equipamentos de cuidado, como creches, restaurantes e lavanderias comunitárias, o peso sobre as pessoas recai desigualmente em pelo menos dois eixos, o das desigualdades de renda familiar (o acesso a serviços privados é possível apenas para as famílias mais ricas) e o das desigualdades de gênero (as mulheres permanecem as principais responsáveis por aquilo de que o Estado se esquiva, inclusive o cuidado com a saúde de familiares). Na proposta do governo, a reforma da Previdência vem, assim, acentuar desigualdades que já estão sendo ampliadas pelos efeitos da PEC do “teto de gastos” (PEC 241/55) e que poderão ser ampliadas pela reforma trabalhista defendida pelo mesmo grupo, que se aprovada alargará a informalidade e reduzirá a proteção no trabalho.

A proposta atual considera, erroneamente, que no sistema previdenciário vigente os homens transferem recursos para a aposentadoria das mulheres de maneira assimétrica. Isso só pode ser pressuposto porque se deixa de lado um fato: as mulheres transferem tempo, energia e os produtos do seu trabalho cotidianamente aos homens, sem que sejam remuneradas por isso. Fazem trabalho social essencial e incontornável, porém desvalorizado. A PEC 287 chancela essa desvalorização, com a recusa do Estado a reconhecê-la.

O efeito principal da proposta atual de reforma, caso seja aprovada, será a ampliação da vulnerabilidade das pessoas que pelas assimetrias no mercado de trabalho, pela divisão sexual das tarefas e pelas especificidades das suas atividades já são as mais vulneráveis e desprotegidas na velhice. Ela é trágica para as mulheres e, também por isso, para toda a sociedade.

Referências:
ANFIP/DIEESE (2017). Previdência: reformar para excluir? Contribuição técnica ao debate sobre a reforma da previdência social brasileira. Brasília: Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil e Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos. Disponível em https://issuu.com/politicasocial/docs/documento_completo.

BIROLI, Flávia (2016). “Divisão sexual do trabalho e democracia”. Dados: Revista de Ciências Sociais, vol. 59, no 3; pp. 257-290. http://www.scielo.br/pdf/dados/v59n3/0011-5258-dados-59-3-0719.pdf

ESPING-ANDERSEN, Gøsta (2009). The incomplete revolution: adapting to women`s new roles. Cambridge: Polity Press.

GALIZA, Marcelo e Alexandre VALADARES (2016). Previdência rural: contextualizando o debate em torno do financiamento e das regras de acesso. Nota Técnica n. 25. Brasília: IPEA. https://ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160525_nt_25.pdf

IPEA (2017). Nota Técnica: Previdência e gênero: porque as idades de aposentadoria de homens e mulheres devem ser diferentes? No prelo, apresentada em eventos públicos para debate.

*Flávia Biroli é doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, da Universidade de Brasília, e autora de vários livros, entre eles “Feminismo e Política” (esse em coautoria com Luis Felipe Miguel).

Fonte: O Blog do Demode

 

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