Pela primeira vez em mais de vinte anos de realização do Seminário Internacional Fazendo Gênero, o putafeminismo protagonizou uma mesa redonda com a presença de ativistas prostitutas. “Um século e meio de abolicionismo: prostituição, criminalização e o controle da mulher” teve participação de Monique Prada, fundadora da Central Única das Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS), Melinda Mindy Chateauvert, historiadora do movimento das trabalhadoras sexuais, e Pye Jakobsson, presidenta do NSWP, organização internacional para profissionais do sexo. O evento que discutiu as ameaças em relação ao exercício da atividade no Brasil segue em mais quatro cidades como parte das comemorações de 30 anos do Movimento Brasileiro das Prostitutas.

No atual contexto político, quais forças facilitarão as feministas abolicionistas brasileiras e que efeitos essas alianças terão nas vítimas que pretendem proteger?”, questionou a palestrante Adriana Gracia Piscitelli do Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp, referindo-se às conexões entre correntes do feminismo com setores conservadores da sociedade. Segundo ela, as feministas que se posicionam como abolicionistas estão entre as principais forças repressoras que impedem as prostitutas de acessar direitos. “O feminismo precisa ouvir outras vozes, entre elas as das prostitutas e buscar estratégias em rede”, diz.

“Quem inventou a ideia de que trabalho é emancipador?”, provocou Melinda Mindy Chateauvert em resposta a uma pergunta do público.

“O dinheiro é emancipador no capitalismo, quando você não tem e passa a ter. O trabalho nunca, a menos que você seja patrão. Nenhum trabalho empodera: o feminismo sim. Precisamos empoderar as prostitutas para que não se sintam lixos”, ponderou Monique Prada em crítica à ideia abolicionista de que a prostituição tem aspectos de coação.

Criminalização absoluta
A estadunidense Melinda Chateauvert falou sobre os programas de recuperação de prostitutas em seu país, onde a criminalização é absoluta, estendendo-se ao cliente e à mulher por meio de prisão e pagamento de multas. “É como se as prostitutas fossem moralmente infecciosas e por isso precisassem ser isoladas da sociedade”. Suas pesquisas trazem relatos de prostitutas forçadas a trabalhos domésticos em casas de recuperação administradas por organizações religiosas.

Mesmo sem condenação, o simples registro policial retira o direito dessas mulheres a qualquer assistência social do Estado. O modelo criminalizante e de reabilitação persiste desde o século XIX no país. “Como seria um programa centrado nas demandas das mulheres, sem criar ou reforçar trauma, e não determinado moralmente pela igreja e Estado. Será que abolicionistas são corajosas para programas deste tipo?”, pergunta Melinda.

Neoabolicionismo
Pye Jakobsson, ativista da Suécia, conta que a prostituição era tolerada em seu país até 1999, quando um projeto de lei apresentado por parlamentares mulheres foi aprovado. A Suécia foi pioneira na adoção da lei que proíbe pagar pelo sexo. O chamado modelo nórdico, que foi adotado recentemente na França e segue em expansão, é defendido pelo movimento neoabolicionista. Diferente do abolicionismo penal que reivindica uma sociedade sem prisões, o feminismo abolicionista busca abolir a prostituição por entender que a atividade oprime a mulher por meio de coação.  

Desde a criminalização, o estigma sobre as prostitutas se ampliou. “O governo diz que o estigma é positivo para conter a prostituição. Decidem sobre nosso corpo e direitos como se fôssemos crianças. Juntam tráfico de mulheres e de crianças. Sou mulher e não uma criança. Temos que parar de falar de mulheres junto com crianças. A Anistia Internacional e outras organizações internacionais concordam comigo. Só queremos ter direitos”, argumenta.

De acordo com Pye, assim como as mulheres trans, as prostitutas não são consideradas “mulheres verdadeiras” na Suécia.

“É um tipo de feminismo que exclui as mulheres que não são ‘verdadeiras’. O direito é de todas e não só das verdadeiras”, diz.

Ameças no Brasil
“Grupos radicais nos acusam de liberal, enquanto estamos nos levantando para que o Estado nos garanta direitos. A imposição da clandestinidade quando não nos mata leva à depressão”, afirma a ativista brasileira Monique Prada.

Entre as ameaças de adoção do modelo nórdico no Brasil destaca-se o PL377/2011 do deputado João Campos – PSDB/GO. “Não precisamos de um modelo igual ao sueco apoiado por uma bancada evangélica”, critica a fundadora da CUTS .

O putafeminismo luta por melhores condições de trabalho e de caminhos para quem não quer mais se prostituir. Segundo Monique, a “indústria de resgate de prostitutas”, fomentada pelo neoabolicionismo, é parte de um dogma patriarcal que recai sobre todas as mulheres que fazem sexo. Referindo ao abolicionismo como um movimento conservador da Inglaterra do século XIX, lembrou que era liderado por Josephine Elizabeth Butler: “uma feminista casada com um pastor”.

A palestrante citou a feminista e historiadora italiana Silvia Federici para assinalar que, em períodos históricos de perdas de direitos, as mulheres pobres recorrem em massa a trabalhos sexuais.

“Federici diz que no patriarcado são três os trabalhos tomados das mulheres sem que nada lhes paguem: o sexual, o doméstico e o reprodutivo. Em certo sentido, a prostituta rompe com essa lógica ao por um preço em seu trabalho”, afirma Monique.

Monique Prada questionou o movimento que busca salvar as prostitutas/Foto: Assessoria FG

Desde o reconhecimento da prostituição como um ofício legal, em 2005, por meio da sua inclusão na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) do Ministério do Trabalho, as putas passaram a ter direito de atuarem nas ruas. Mesmo que tenha restrições em relação ao PL Gabriela Leite, a ativista apoia a regulamentação da atividade. “É preciso legalizar para ter segurança e não parar por aí. Como defender direitos depois do golpe quando há retrocesso para todas as trabalhadoras?”

“Favorecer a prostituição ou outra forma de exploração sexual” continua sendo crime pelo Código Penal brasileiro. Entre outros delitos relacionados à atividade está o tráfico interno de pessoa.

 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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