Brasileira faz relato exclusivo ao Catarinas sobre o que viu na Women’s March, nos EUA

“Os Estados Unidos é o país do Batman e do Super-Homem. As minorias podem ser aceitas desde que no andar de baixo”, foi esse o comentário que li de um parente distante, homem, de seus cinquenta e poucos anos, no meu post revoltado apoiando as minorias, assim como eu, após o resultado das eleições estadunidenses.

O dia seguinte das eleições foi uma manhã triste em Nova York. Na noite anterior, vi os bares do Brooklyn, sempre tão barulhentos, num silêncio sepulcral. O bar estava lotado, mas todos estavam perplexos, olhando para os mapas de estados azuis e vermelhos na televisão. Ora, para quem vive em Nova York, a cidade “prafrentex” da América, onde se convive com pessoas tão interessantes, sortidas, cultas, de todos os cantos do mundo, a eleição já estava decidida: era óbvia. No dia seguinte, ler o comentário do parente no metrô, com pessoas chorando dentro do vagão, enfraqueceu ainda mais a esperança que tinha sido sufocada na noite anterior. Como é possível um futuro que nos era óbvio ter acabado assim? Mais uma vez aquele que ganhou era um homem, branco, “poderoso”. E ainda, como brasileira, vi em menos de um ano duas mulheres fortes e líderes natas serem tiradas do poder por um homem qualquer nota.

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A reta final da campanha da Hillary fortaleceu tanto o poder feminino que o ano de 2017 foi planejado nos Estados Unidos para ser também culturalmente dedicado às mulheres (e, sim, ainda será).  A sensação do “até que enfim uma mulher”, o slogan “I’m with her” [Eu estou com ela] deixaram o velhinho Bernie um pouco de lado para a esquerda, e muitos abraçaram a ideia da primeira mulher presidente do país. Nos debates, Hillary Clinton tirava de nota. Ela já estava acostumada: passou sua vida toda se preparando para a sua hora. Os debates com o oponente viraram uma piada entre os nova-iorquinos, que no dia seguinte repetiam frases errôneas de Donald. Mas Nova York, afinal, não representa os Estados Unidos. E todos beberam todas as mágoas na noite que Trump venceu.

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O resultado das eleições fez nós, a minoria imigrante, LGBTT, latina, negra, feminina, oriental, árabe murchar. Será que afinal das contas esse país é mesmo o país do Super-Homem ou do Batman? Caras nascidos em berço de ouro com charme e elegância. Aliás, até hoje temos que debater isso?

Engraçado, os algoritmos infalíveis do Spotify me sugerirem “Podres Poderes” naquela semana.

“Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos
Será, será, que será?”

Diante da fraqueza da derrota de um futuro cheio de direitos, somada a mais tantos boatos do que o novo presidente faria ou não com organizações como a querida Planned Parenthood, a possível proibição ao aborto e mais obstáculos com a imigração foi que surgiu a Women’s March, a Marcha das Mulheres.

As revoluções e protestos sempre agradaram a minha gana pela justiça e pela energia coletiva de um grupo de pessoas. Além disso, ir a uma marcha em Washington me lembrava muito aquela cena do Martin Luther King no Forrest Gump, em que a Jenny e o Forrest se reencontravam no maior clima Hippie. Eu queria respirar o que estamos vivendo e que eu sinto na pele em cada conversa que tenho com mulheres de tantos cantos do mundo. Estamos em mudança.

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As americanas que moram comigo organizaram uma reunião para confeccionar cartazes. Todos pensados com trocadilhos, exaltação e sarcasmo. A ideia era séria mas a realidade nos era absurda que só ironias, afirmações e referências Pop, elementos tão presentes no nosso cotidiano que aliviariam e falariam pela gente. Elas fizeram questão de trazer frases em outras línguas, principalmente português, emprestadas das nossas marchas: “Eu não vim da sua costela, você que veio do meu útero” ou até mesmo “My Pussy é o Poder” frase da música de Valesca Popozuda, que se encaixou na situação como uma luva. Valesca faz o feminismo que bem entende. Já passou da hora do mundo não associar feministas apenas a mulheres que escolhem não se depilar ou mostrar os peitos. O movimento abrange isso e muito mais. Foi ali, no contexto do funk, visto como extremamente machista, que brotou Valesca e tantas outras que nos fazem ralar a calcinha no chão e termos certeza do que podemos ser feministas do jeito que melhor nos encaixar. Arrumando a mala para a viagem, perguntei às meninas se a gente precisava levar uma bandana com uma garrafinha com vinagre – heranças de momentos violentos que vivi no nosso Pindorama – elas riram. Mas eu levei mesmo assim.

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Foi num grupo feminista de brasileiras no Facebook, o Share your PPK que uma moça gentilmente me ofereceu a casa dela para ficar. Eu não a conhecia, mas apenas pelo fato de ela ser mulher, brasileira e feminista já me bastou para confiar e nem hesitar.

Na rodoviária, todos os ônibus para Washington estavam lotados de mulheres com cartazes enrolados em elásticos de cabelo presos na mala. A fila do café na parada da estrada era só de mulheres. Os homens eram poucos mas todos acompanhando algum grupo que ia na Marcha. Muito trânsito na estrada com carros lotados de mulheres.

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A chegada em Washington é sempre impactante, ao sair da rodoviária nos deparamos com uma bandeira gigantesca americana e o Capitol atrás. Pá! Terra de ninguém. Era ali que naquela mesma tarde Obama passara o poder para Trump. Fiquei um pouco ali, parada observando, pensando. A reação das meninas era semelhante, como se tivessem chegado para uma guerra: absolutamente preparadas. “Eu não acredito que isto está acontecendo!”, uma frase que eu ouvi bastante, e que servia tanto para refutar a incredibilidade do que estava acontecendo com o país delas, quanto um grande orgulho do que aconteceria na manhã seguinte. Washington, na noite da posse, estava assustadora: distópica. De minuto em minuto grandes grupos de viaturas policiais passavam depressa nas avenidas principais. As sirenes eram de explodir os tímpanos e as luzes cegavam. Um escândalo. Tinham muitas pessoas entorpecidas andando tortas pelas ruas. Aqui também tem o fiu fiu. E eu que sempre fui de responder “mal educada”, naquela noite vagando sozinha procurando o prédio da nova amiga tive medo dos homens debruçados em ruelas com sombras provocando a minha paciência. “Amanhã eles vão ver só”, pensei. Eles. Todos eles, e tudo o que eles representam.

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No dia seguinte hordas de mulheres andavam em grupos se cumprimentando como comadres. O clima era de amizade, sororidade. Estavam ali umas pelas outras, todas por uma. Os elogios e cumplicidades se estendiam da fila do café à muvuca pré marcha. Uma muvuquinha confortável, acolchoada por tantas mulheres de agasalho, de todas as idades, muitas usando a famosa touquinha rosa, uma com o cartaz mais bacana que o outro. “Se fosse no Brasil já tinha o tio vendendo cerveja”, logo pensei. Mas de todos os protestos que eu fui no Brasil, aquele mar de “pepecas” nunca me fez tão tranquila, forte e feliz de estar ali naquele momento. Era uma segurança e energia que se estendia da presença física para a psicológica. As músicas do protesto eram fortes, reverberavam como eco na boca das outras. As crianças, empolgadas, sempre lideravam novas canções.  Um dos momentos mais lindos que presenciei foi um grupo de muçulmanas, todas vestindo véu roxo, que começou a cantar o próprio hino de empoderamento. Todas ao redor abriram espaço para o momento, todas em silêncio, afinal, aquele era o lugar de fala delas, e todas respeitaram e estavam interessadas em escutar. Ao terminarem as moças foram ovacionadas. Os grupos variavam muito. Ali vi mulheres de todas as idades, famílias que levaram gerações, cadeirantes, grupos LGBTT, judias, muçulmanas, pessoas de caravanas vindas do Texas. Eram muitas.

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Os cartazes carregavam piadas, ironias, persistência e referências à cultura Pop. Um deles que vi no final tinha a letra da música de Carly Simon, “You’re so vain/ I bet you think this March is about you/ Don’t you?/ Don’t you?” [Você é tão vaidoso/ Aposto que você acha que esta Marcha é sobre você/  Não é mesmo?/ Não é mesmo?] . E isso era uma certeza. As mulheres não estavam ali contra alguém mas a favor delas mesmas. Aquele era um espaço de resistência, posicionamento, feminismo, sororidade e um enlace feminino que fortaleceu muito a relação umas com as outras. O que acontece com o resto da história não abafará mais a luta. Foi muito mais lindo do que o filme do Forrest Gump. Agora é sobre uma história de amor próprio e amor pela outra. Estamos vivendo e lutando por isso todos os nossos dias e a existência desta marcha mostra que não estamos sozinhas. E essa força vai reverberar para que qualquer mulher nos Estados Unidos ou onde elas estiverem, para que todas sintam-se forte para fazer o que bem entender. Tive a oportunidade de ver a nossa história, a história das mulheres, acontecer bem na minha frente. Não estamos esperando que ninguém nos salve, muito pelo contrário: este mar de  toquinhas rosas contendo milhares de pessoas, cada qual com suas individualidades como potência – e não uma única personificação – foi o responsável pela a maior Marcha da história estadunidense. A cara foi dada a tapa,  a gente, sim, pode ser heroína – se é que possível pensar nesse termo ainda hoje. Resistir e lutar já é parte essencial de toda a mulher. Não esperamos sermos salvas, queremos tentar mudar, e a iniciativa parte de nós, de cada vírgula e desconstrução que fazemos no nosso cotidiano. E como todas falam por aqui, aquele foi apenas o dia número um. Muitas outras marchas já estão pipocando por aqui, o Facebook já está repleto de eventos marcados até Julho, todos tem seus canetões e cartolinas preparados em casa e a intolerância será rebatida.

E para o meu parente eu diria: “Super-homem”, cara pálida, só se for a música de Gilberto Gil.

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Cobertura textual e fotográfica especial para Catarinas.


 

 

 

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