Por Marina Juliana Gonçalves.

Precisamos conversar sobre privilégios. Porque agora são 00h10 de uma terça-feira véspera de feriado e eu e minha namorada estamos em casa. Não porque assim decidimos. Não porque esse era o plano. Estamos em casa porque sentimos medo. E sentimos medo porque somos mulheres sapatonas.

Realizando todos os sonhos de duas moças com pouco dinheiro entediadas em casa, ganhamos ingressos para uma festa de funk-pagode-lambada-sertanejo-hipster. Nos arrumamos, saímos, chegamos na festa e deu medo. Éramos nós duas e vários… caras.

É mais ou menos nessa altura do texto que eu sei que olhos começam a rolar e comentários como “ai, mas que exagero! Isso é misandria!!111!!1!” aparecem. Primeiramente, não. Segundo, eu e a Bin, minha parceira, temos uma casca grossa. A gente já sentiu muito na pele as agruras de ser sapatão assumidíssima que dá close por aí. Mas ali, por algum motivo, a gente ficou apavorada.

Não precisamos nem trocar muitas palavras para entender que ali não parecia seguro o suficiente para valer a pena ficar. Chamamos um Uber e voltamos pra casa. Enquanto esperávamos o carro chegar, comentamos que se um dos nossos amigos homens estivesse ali com a gente, provavelmente teríamos ficado. Se outras amigas estivessem por lá também. Mas não era o caso.

Porque ser uma mulher que ama outra mulher é só saber o que é paz no peito uma da outra. Não existe outro lugar seguro. Talvez a gente ficasse na festa e nada acontecesse, nenhum cara mexesse com a gente, ninguém tentasse nos assediar ou no direcionasse agressões verbais. Duvido muito, não tivemos muitas festas assim, mas talvez. O preço é muito alto para pagar pra ver.

Conversando com a minha terapeuta, comentei que desde que havia começado a namorar com a Bin, o meu alerta de perigo — esse que toda mulher carrega no peito desde o dia que nasceu — havia ficado ainda mais frequente. Lugares que antes eu considerava seguro (como shoppings, por exemplo) já não o são. A noção de segurança muda consideravelmente.

Não ficamos traumatizadas ou deprimidas pelo ocorrido. Voltamos, colocamos o pijama, ligamos a TV e eu estou aqui escrevendo, enquanto ela me interrompe constantemente pra falar das coisas que lê no Facebook, esfrega um lenço pra tirar minha maquiagem e pede minha opinião sobre o que colocar de decoração no corredor do nosso apartamento.

Mas triste mesmo é pensar que hoje foi o “Coming Out Day” — Dia de Sair do Armário, traduzido livremente. Porque a gente tende a pensar que só é necessário sair do armário umas poucas vezes, para a família, pros amigos próximos. Mas não é bem assim. Ser lésbica, gay, bissexual, trans, travesti, é sair do armário todo dia. É inevitavelmente anunciar pro mundo cada vez que decide pegar na mão da sua namorada. É nunca saber se fala pro taxista que está indo pra casa da sua namorada ou da sua amiga. É pensar duas vezes antes de chamar ela de “amor” na feira de quarta de manhã entre a barraca de batatas e a de tomates italianos.

Mas também é revolução. Então a gente aqui agora só quer dormir e acordar num dia melhor. Quem sabe.

ps: pra não ficar uma tristeza só esse texto, vou deixar essa música que convenientemente eu viciei hoje. Porque um homem não me define, minha casa não me define, minha carne não me define, eu sou meu próprio lar 😉

Marina é jornalista e integrante do Coletivo Jornalismo Sem Machismo.

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