Lançada há 56 anos, a pílula anticoncepcional representou uma verdadeira revolução para a liberdade sexual das mulheres. Sua hegemonia como método contraceptivo, porém, vem sendo confrontada por mulheres dispostas a conhecer seus corpos e descobrir formas de proteção que ofereçam menos riscos à saúde. “A pílula seduziu por muito tempo as mulheres que hoje começam a se questionar se a suposta facilidade vale os riscos”, afirma a ginecologista Halana Faria, integrante do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.

Em entrevista exclusiva ao Catarinas, Halana diz que é cada vez mais comum as mulheres buscarem o consultório médico para esclarecer dúvidas sobre outros métodos de contracepção, entre eles o preservativo feminino. Esse é o quarto capítulo da Série Especial Camisinha Feminina.

As mulheres conhecem seus corpos?
O corpo das mulheres tem estado sob poder  da medicina, do Estado e da igreja há muito tempo. Requisitar autonomia sobre o mesmo vai depender além de muita luta política, de coragem para entrar em contato com ele, de observar seus sinais. Adonar-se do próprio corpo requer observo-lo e vejo muito esse movimento ressurgindo. As mulheres estão questionando como nunca a ‘autoridade médica’. Questionando a maneira hegemônica de parir, questionando tratamentos convencionais, questionando supostas patologias e rótulos. Vejo muitas mulheres ensinando umas às outras, principalmente em redes sociais como compreender seus ciclos menstruais, como engravidar sem precisar de um médico, como conseguir parir, como tocar seu colo para usar um copinho coletor de menstruação. Claro que em um primeiro momento há uma recusa e questionamento da supremacia da tecnologia sobre as nossas vidas. Um tentativa de retorno ao ‘natural’. Mas acho que o mais importante é que as mulheres possam expressar suas necessidades sem cair em novos dogmas. Tenho um pouco de receio especificamente com os discursos que pretendem idealizar uma certa natureza feminina. Acho que dá para avançar construindo e resgatando conhecimentos sobre nossos corpos mas também promovendo liberdade para escolha, para que as mulheres possam ser quem elas desejem, inclusive construindo e desconstruindo seus corpos e suas sexualidades.

Qual a sua opinião sobre o preservativo feminino?
A camisinha feminina é muito segura quando usada corretamente. A contracepção é uma questão bem individual. Cada mulher precisa entender qual é a sua necessidade e disposição. Mas seu maior trunfo é de ser um método seguro como contracepção e também contra DSTs. Quanto ao conforto já ouvi opiniões bem diferentes. Queixas relacionadas ao anel interno ser grande e não ficar bem adaptado ao colo do útero internamente.  Como o tamanho é único, o disponível pode mesmo não se acomodar nas diferentes vaginas das mulheres.  Outra reclamação frequente é quanto ao barulho que faz por ser de poliuretano, mais fina que o látex, mas que se acomoda mais frouxamente no canal vaginal.

Foto: arquivo pessoal
Para ginecologista, ainda há muita desinformação/Foto: arquivo pessoal

A camisinha pode conferir mais prazer?
Já ouvi o relato de uma enfermeira que trabalha em um Centro de Saúde do interior de São Paulo, que ficou surpresa com a saída rápida da camisinha feminina entre mulheres mais velhas. Conversando com uma delas, uma senhora conta que a notícia de uma camisinha que ajudava a gozar se espalhou pelo bairro. Achamos que o anel externo friccionando o clitóris pode ser o motivo da alegria das jovens senhoras. Também pode ser uma opção para mulheres em relações amorosas com homens que tem dificuldade para manter a ereção com a camisinha. Claro que o prazer na relação está em buscar dar prazer um ao outro/outra das mais diversas formas. Mas em relações entre homem e mulher ainda é preponderante a penetração vaginal como prática sexual e queixas frequentes de que a camisinha masculina convencional causa desconforto e assadura nas mulheres. Uma parte dessa queixa talvez possa ser explicada por conta de baixa lubrificação, e outra por conta do trauma pelo contato com o látex ou às vezes uma camisinha de tamanho inadequado.

Há resistência efetiva no uso ou a baixa adesão deve-se à falta de informação?
Acho que há muita desinformação. Há uma hegemonia na oferta de métodos contraceptivos hormonais que passaram a ser utilizados para além da contracepção como um cosmético para melhorar a acne, diuréticos para diminuir retenção de líquidos, reguladores de menstruação e de humor. O alerta para os riscos dessa opção tem se difundido e muitas mulheres tem buscado opções não hormonais. Pedem autorização para deixar a pílula, temem ficar sem a mesma como se estivessem deixando uma droga que lhes provocasse adição. Uma orientação sobre todas as opções leva tempo de uma consulta e as mulheres tem pouco contato e troca de experiência com mulheres que usam outros métodos além dos hormonais. Isso parece estar mudando. Vejo as mulheres entusiasmadas para provar diferentes métodos. Sou grande entusiasta da camisinha masculina e da combinação dela com outros métodos de barreira como o diafragma. Talvez por não ter tido experiência muito bacana com a camisinha feminina. Mas percebo que as mulheres, principalmente as mais jovens estão se abrindo para experimentar métodos diferentes e de forma combinada. Por exemplo, tenho muitas pacientes que fazem percepção de fertilidade como método de conhecimento de si associado à camisinha e/ou diafragma. Muitas mulheres recorrendo ao DIU de cobre também.

Nem todas as farmácias oferecem camisinhas femininas. O que isso revela?
Não estar disponível em farmácias revela que é baixa a procura. Veja se falta algum tipo de contraceptivo hormonal… Mas precisamos garantir que esteja disponível gratuitamente nos centros de saúde.E para isso os gestores e profissionais de saúde precisam se empenhar na sua divulgação, mas não com os velhos grupos de planejamento familiar. Essa discussão é tão atual é possível problematizar tantas coisas. Profissionais de saúde precisam escutar o que as mulheres tem a dizer. De verdade, entender suas queixas, e as dificuldades relacionadas à negociação do uso da camisinha, os efeitos colaterais dos métodos disponíveis (anticoncepcionais e DIU), enfim, colocar prós e contras na roda e confiar na escolha e capacidade das mulheres em assumir responsabilidade. Acho que ainda é muito presente um discurso normativo e prescritivo que sempre desconfia da habilidade das mulheres em cuidarem de si mesmas.

Ainda há resistência no uso da camisinha “convencional”?
Eu acho que já houve mais resistência com relação ao uso de camisinha. Acho que as mulheres percorreram uma larga estrada para estar em relações menos desiguais e negociar o uso da camisinha masculina hoje em dia. Mas para muitas mulheres essa não é a realidade. Ainda se ouve entre mulheres coisas do tipo: “mas o que ele vai pensar de mim se eu andar com camisinha na bolsa?” A condenação da liberdade sexual das mulheres aparece bem disfarçada aqui e para muitas, usar contracepção hormonal passa a ser a ‘saída’. Porque você não se expõe ao ‘embaraço’ de ser taxada de promíscua, o que é um absurdo e falamos pouco sobre isso. E não é preciso que os médicos/assumam uma postura prescritora e higienista, as mulheres sabem os riscos a que se submetem quando não usam camisinha, sabem que estão mais expostas do que os homens. É preciso compartilhar táticas de jeitos bacanas de usar, informações sobre os diferentes tipos, modelos, tamanhos, sabores. Apimentar um pouco essa prática de saúde pública arcaica que tenta a todo custo martelar na cabeça das mulheres a necessidade de usar camisinha.

A camisinha feminina traz autonomia para a mulher?
E sim, acho que a camisinha feminina, mesmo com suas limitações, traz autonomia para a mulher. Bom, acho que se um homem não topa usar camisinha masculina e este é o único método disponível, a transa nem deveria acontecer, porque ele está exigindo que ela se desresponsabilize do próprio corpo. Entendo que no calor do momento o julgamento pode ficar prejudicado também. O diafragma, método antigo com taxa de falha um pouco alta quando usado isoladamente (espermicida hoje não é mais comercializado, recomenda-se que seja usado em conjunto com camisinha e percepção de fertilidade) é também um exemplo de método que confere autonomia. O Coletivo Feminista promoveu seu uso entre trabalhadoras do sexo como uma medida de redução de danos com clientes que se opunham a usar camisinha. Talvez a camisinha feminina também possa ser pensada nessas circunstâncias, apesar de ser menos discreta, pode ser colocada antes da relação pela própria mulher.

A série segue com mais um capítulo.

Especial Camisinha Feminina: as mulheres no controle da proteção

Camisinha Feminina: os obstáculos para acessar o método

Camisinha Feminina: representante do Ministério da Saúde fala sobre benefícios e desafios

 

 

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