Ativista dos direitos humanos com foco nas mulheres travestis e pessoas transexuais, a vice-presidenta da União Nacional LGBT (UNA) de Santa Catarina, Mariana Franco, de 30 anos, tem como referência de luta Gisberta Salce Junior, a brasileira transexual violada por 14 adolescentes em Portugal e que se tornou símbolo LGBT. Transexual, a jaraguaense contou à reportagem do Catarinas sobre a vontade que a move de transformar a crua realidade da intolerância e do ódio, combatendo todas as formas de preconceito e conhecendo cada vez mais como vive a população LGBT no Brasil.

Mari, como gosta de carinhosamente de ser chamada, está prestes a concluir o curso de Administração com habitação em Comércio Exterior e lutará pela retificação de seu nome para tê-lo no diploma, mesmo tendo de enfrentar, segundo ela, “um processo burocrático judicial constrangedor”. Essa é apenas uma das lutas previstas para 2017. Ela quer que Florianópolis, onde um projeto reconheceu o uso de nome social, seja exemplo para as demais cidades catarinenses.

Apesar de tantas dificuldades, ela reconhece avanços na sociedade e recorda dos tempos de crianças quando o acesso à informação era bastante limitado. “Quando eu tinha 12 anos, desconhecia o que era travesti. Não tinha um livro sobre isso e, na época, não tinha acesso à internet. Não aprendia na escola. Travesti estava ligada diretamente à prostituição e tráfico de drogas. Ainda hoje existe isso. Quando me veem, se surpreendem e me perguntam ‘Você não faz programa? Você usa drogas? Você é operada?’ São perguntas indiscretas, como se eu fosse alguma novidade marciana.”

Além de estar à frente da UNA em Santa Catarina, Mari é vice da entidade em Jaraguá do Sul, integra a União Brasileira de Mulheres (UBM), o Coletivo Transcender de Joinville e a Federação da União dos Cultos Afrobrasileiros (Fuca). Também é conselheira do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas (Comen) e do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (Compir), ambos da cidade onde nasceu.

Em entrevista ao Portal Catarinas, Mari falou sobre a importância do diálogo entre a população LGBT e os movimentos feministas, antecipou que haverá programação para marcar o Dia da Visibilidade Trans, celebrado no próximo dia 29, e discutiu acerca do papel social da população trans. Confira!

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Mariana é vice-presidente da UNA em Santa Catarina/Foto: Arquivo pessoal

Catarinas:A UNA LGBT foi constituída em Santa Catarina no começo de dezembro. Qual é a importância da entidade em nível estadual?
Mari:
Temos o sonho de possuir uma UNA em todas as cidades catarinenses. Vamos percorrer Santa Catarina para conhecer a realidade das pessoas LGBT, conhecendo elas nos olhos. No caso do empoderamento das pessoas transexuais ou travestis, não posso comparar com a minha realidade nem com a da travesti negra nordestina, por exemplo. Essa vai receber preconceito por ser nordestina, por ser negra, por ser travesti. E é muito importante, para toda a população LGBT do Estado, que exista um grupo em que se possa confiar, se sentir bem, encontrar amigos, aprender sobre seus direitos. E fazer com que essas pessoas, depois de um tempo de luta, possam empoderar outras pessoas. Essa é a importância da entidade. Não queremos apenas pessoas para fazer números, mas, sim, para que elas saibam que realmente estamos aqui para lutar pelos nossos direitos.

Catarinas: Quais são as reivindicações da UNA? Em SC, a UNA tem uma sede, canal de comunicação com o público?
Mari:
Trabalhamos com diversos conselhos municipais, estaduais. Queremos o espaço da população LGBT opinando e discutindo sobre leis, sobre nossos direitos e o que é melhor para nós. Eu não quero que adolescentes LGBT sofram hoje os mesmos preconceitos que eu tive 15 anos atrás, aquele medo de ir para a escola ou medo da família. Como fazemos isso? No próprio meio político. Tem muito vereador que é contra qualquer direito à população LGBT, mas que soube pedir o voto para nós. Nossos direitos são políticos e temos de ir à Câmara de Vereadores. Na Assembleia Legislativa, também temos de falar e sermos ouvidos. Hoje temos a nossa página no Facebook, que é União Nacional LGBT SC, além das regionais. Quem quiser participar dos grupos de whatsapp, é só enviar uma mensagem no Facebook informando o contato. As regionais fazem reuniões mensais e ações comunitárias, informando sobre os eventos nas redes sociais. E quem quiser se filiar deve comparecer a uma reunião, ler a carta de princípios e participar.

Catarinas: Como a entidade pretende atuar? Já existe um planejamento?
Mari:
Ainda não montamos um calendário, mas, em janeiro, vamos nos reunir e fazer a programação em parceria com as regionais. Vamos circular todo o Estado, fazendo ações com a comunidade e para a população LGBT. Logo temos o Dia da Visibilidade Trans, que é no dia 29 deste mês. Estamos preparando algo para essa data. Só não conto porque é segredo (risos). Ao longo deste ano, devemos fazer palestras, seminários, conferências, ações sociais, paradas do orgulho LGBT.

Catarinas: Quais são as principais preocupações e avanços em SC no que diz respeito na ampliação dos direitos da população LGBT?
Mari:
Recentemente, em Florianópolis, um projeto reconheceu o uso de nome social. Tivemos também a criação do conselho de saúde LGBT. Mas, não devemos ficar felizes somente pela nossa Capital, pois temos de lutar para ser algo estadual. Temos muitas preocupações por conta dos governantes eleitos e sinto medo do que pode vir, principalmente, em razão do atual governo federal. Santa Catarina está andando muito devagar nas questões LGBT. Os Estados de SP e RJ estão com avanços incríveis. Mas vamos chegar lá, tenho certeza disso.

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Foto: arquivo pessoal

Catarinas: Como você vê a luta da população LGBT e dos movimentos feministas? Como estão conversando?
Mari:
Ainda existem muitas preocupações que envolvem a população LGBT e os grupos feministas. Existe, sim, o homem gay misógino e machista, como também existem feministas que desqualificam a população T, afirmando que não são mulheres. São dois grupos que em grande maioria lutam por causas parecidas. Muitas lésbicas fazem partes dos dois movimentos, assim como bissexuais, trans. Então, em vez de criarmos rivalidades entre os dois movimentos, por que não fazemos ações em busca do entendimento das situações que nos afetam? Acredito sempre que são lutas difíceis, lutas grandes, em que ambos movimentos participam. Mas, não adianta nos contra-atacarmos, mas, sim, lutarmos juntos. Os inimigos estão à solta. E enquanto brigamos entre nós, mais direitos vamos perdendo, temos que achar os verdadeiros vilões. Já fui muito atacada por feministas, mesmo fazendo parte do feminismo. Mas isso não me abala ou me deixa triste. Me deixa muito mais forte para seguir adiante. Quando vejo alguém dentro do movimento LGBT com falas que diminuem ou constrangem qualquer pessoa, independentemente de cor, raça, orientação sexual, religião, eu converso e tento fazer entender as coisas de uma forma mais ampliada e quebrar aos poucos esse preconceito.

Catarinas: O que é ser feminista para você?
Mari: Entrei na UBM por conhecer a Joice Pacheco, grande feminista de Jaraguá. Obtive grande conhecimento com a Carol Chaves, presidente da UNA Jaraguá e com a Mariana Pires, presidente da UBM Jaraguá. Sou feminista, digo melhor, sou trans feminista. Luto diariamente contra toda opressão machista e toda opressão do patriarcado que recebemos diariamente. Ser feminista é conhecer o próprio corpo, conhecer as atuais conjunturas do governo nacional, conhecer seus direitos. É você se sentir feliz e tranquila. Ser feminista é você bater no peito e ter orgulho de ser mulher. Em todo nosso passado histórico, mulheres são reprimidas, diminuídas. Temos de mudar isso, nos amar, falar de sexo, saber as leis, quais são os nossos direitos, nos orgulhar por sermos mulheres. A cada dia aumentam os números de feminicídio e de transfeminicídio. A cada dia temos de ser mais fortes e lutar por isso.

Catarinas: Qual é o papel social da população trans?
Mari:
O Brasil é o país que mais mata pessoas T. A cidade que mais mata pessoas T é Curitiba, capital paranaense bem próxima do nosso Estado. Noventa por cento da população T no Brasil possui como trabalho a prostituição e 5% da população T no Brasil conseguiu cursar ensino superior. A expectativa de vida de uma pessoa T é de 32 anos no nosso país. Não temos nenhuma lei que nos protege. Não temos direito a retificação de nome sem um processo burocrático judicial constrangedor. A fila de espera para cirurgia de transgenitalização no SUS é de 15 anos em média. É muito difícil falar sobre a população trans no Brasil. Meu papel social é o de trazer essa parte da população LGBT para dentro do movimento, ajudar, empoderar, ser uma amiga em todos os momentos. Recebo mensagem às 3h da madrugada de alguém querendo desabafar as dificuldades de ser T no Brasil. Eu sempre faço o trabalho, de explicar que trans e travesti são um ser humano igual aos outros e que merecemos fazer parte da sociedade.

Catarinas: Na sua opinião, quais os ganhos sociais com a inclusão da população LGBT nas escolas, meio acadêmico e mercado de trabalho?
Mari:
A população LGBT ainda sofre muito preconceito. Não me refiro à inclusão, mas temos de ocupar cada vez mais esses espaços. Temos de ir à faculdade, não ter medo de ir, temos de lutar por vagas de trabalho iguais. Devemos lutar por nossos direitos, estar presente na sociedade, sermos vistos e presentes. Estamos aqui. Temos de parar de esconder o que a sociedade não quer. Se dizem “não quero vocês”, pois lá devemos estar. Negro não volta nunca mais para senzala, mulher não é mais do parideira e LGBT não fica no armário. Basta.

Catarinas: Para você, qual é o papel do Estado em busca da sensibilização às causas da diversidades de gênero?
Mari:
A obrigação do Estado é proteger. Cuidar das pessoas. Se ele não protege todas e todos, não faz inclusão e, então, começa o erro. Penso que primeiramente o Estado, deve estar preparado. A conscientização das pessoas começa desde criança. É preciso educa-las para que se tornarem seres humanos melhores que nós. Eu vejo criança com quatro anos sem preconceito algum, mas com as falas familiares esses preconceitos são embutidos diariamente Criança aprende tudo na escola. Por que não aprender que existe uma pluralidade de pessoas e suas diversidades? Por que os profissionais de saúde do SUS não podem oferecer um atendimento humanizado? E o Judiciário está preparado para atender as diversas formas da nossa sociedade? A sensibilidade e a humanização tem de partir de dentro para fora.

Catarinas: A visibilidade da população LGBT ajuda a combater o preconceito? Por quê?
Mari: Quando eu tinha 12 anos, desconhecia o que era travesti. Não tinha um livro sobre isso e, na época, não tinha acesso à internet. Não aprendia na escola. Travesti estava ligada diretamente à prostituição e tráfico de drogas. Ainda hoje existe isso. Quando me veem, se surpreendem e me perguntam ‘você não faz programa? Você usa drogas? Você é operada?’ São perguntas indiscretas, como se eu fosse alguma novidade marciana. As pessoas esquecem que desde a década de 1980 existe população T considerável no Brasil, mas não as veem. A sociedade só permite que trans saia na rua depois de escurecer. E antes do amanhecer já não devem estar na rua. A sociedade quer que trans seja prostituta. Quando vê ela ocupando um cargo maior já se ofende. Como não tenho medo de nada e saio livremente quando bem entender, já consegui quebrar preconceitos de algumas pessoas e mostrar que trans é um ser humano. Dois homens se beijando em local público causa raiva nas pessoas, mas a madame só vai ao cabeleireiro que é “alegre'” porque ele é bom, mas crítica ele e o namorado se beijando. Duas lésbicas se beijando, todas nós já sabemos o que a sociedade pensa né? Eu me mostro, coloco a cara ao sol. Muita gente que me procurou, por dificuldades de assumir para si a sua transexualidade. Se eu tivesse o mesmo acesso às informações como hoje, minha infância e adolescência teriam sido mais fáceis.

Catarinas: Quais são os principais desafios para 2017?
Mari:
O meu desafio vai ser ter tempo (risos). Tenho conferências nacionais e municipais para ir, tenho todo o projeto da UNASC e a UNA Jaraguá. Fui convidada para escreverem uma biografia minha, vai ser corrido, mas estou feliz. O desafio maior será com os novos governos eleitos em 2016. Será preciso começar todo um trabalho, com novas pessoas ocupando cargos importantes. Espero que os novos líderes sejam para TODAS e TODOS, e não somente para os privilegiados. Eu já disse “Fora Temer” na entrevista? Se não, Fora Temer!

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