Cristina Lamounier tatuou o sobrenome nas costas, preservando a parte do registro civil que cabe na sua identidade. A professora de português e inglês que circula pelos corredores e salas-de-aula da Escola Básica Municipal Brigadeiro Eduardo Gomes, no Campeche, não se sente a mesma pessoa que figura nos documentos apresentados na secretaria quando foi contratada. Em 2015, ela assumiu a identidade trans e adotou o nome social, mas não pode usá-lo oficialmente. Apesar da lei municipal nº 10.186/2017 reconhecer a designação do nome próprio pelo qual a pessoa travesti ou transexual se identifica em todo o território da capital catarinense, ela não vale para pessoas como Cristina, contratada em regime temporário.

No local de trabalho, como em todos os espaços, ter o nome com que se identifica respeitado é mais do que uma questão de inclusão e visibilidade. Além de evitar situações de preconceito – sempre urgente no país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo a Rede Trans – ser chamada pelo nome que escolheu é também socialmente pedagógico. “É tão importante pras pessoas trans quanto pra quem tem convivência com elas por que começam a entender melhor (esta condição) e a levar informações para outras pessoas”, explica.

Cristina não pode usar o nome social no local de trabalho | Foto: Ana Claudia Araujo

Se usar o nome social já oferece barreiras, a modificação do nome e a alteração do campo “sexo” no registro civil segue ainda um calvário próprio. A psicóloga Cleo Martins entrou com o processo de retificação há três anos em Criciúma, cidade que tem a comarca mais próxima de Siderópolis, no sul catarinense, onde mora. Enquanto no Rio Grande do Sul, estado pioneiro na adoção da Carteira de Nome Social para travestis e transexuais, o processo leva em torno de dois meses, já em Santa Catarina a burocracia consome a paciência de quem luta pelo reconhecimento da sua identidade.

Pela lei, qualquer pessoa pode solicitar a mudança de nome. Mas a autodeclaração expressa pelas pessoas trans para adotar um nome considerado incompatível com o gênero que consta no documento de registro precisa ser referendada por outras pessoas perante a Justiça. “Já tive que levar vários documentos. Precisei pagar uma perita para ter um laudo psicológico. Na semana passada, o juiz pediu três testemunhas que me conheceram antes e depois da transição. É bem desgastante”, conta.

Cleo aguarda há três anos a retificação da documentação | Foto: Arquivo pessoal

O reconhecimento do nome social vem acontecendo de forma gradual. Em 2009, o Ministério da Saúde passou a permitir o uso da identificação escolhida no SUS, abrindo caminho para que outros programas governamentais, como o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), em 2013, fizessem o mesmo. Há também decisões em níveis federal, estadual e municipal que valem para órgãos públicos, instituições de ensino e empresas estatais. Na prática, a aplicação das determinações é frágil.

“Há pouco tempo fui no posto pra tentar atendimento e aferir minha pressão e a enfermeira me chamou pelo nome de registro. Fiquei extremamente constrangida. Não consegui me levantar do banco pra receber atendimento. Mesmo nos lugares em que o nome social é aceito, as pessoas tem dificuldade de aceitar e fazer valer”, relata Cristina.

Leis procuram garantir respeito a mudança do nome 

Uma lei de identidade de gênero tramita no Senado desde 2011 e procura desburocratizar o processo do reconhecimento do nome social. O PL 658, proposto pela senadora Marta Suplicy (PMDB), reconhece o direito da pessoa trans à troca de nome e sexo nos documentos sem que seja necessária a cirurgia de redesignação sexual, bastando laudo médico, psicológico ou psiquiátrico. A proposição segue tramitando na primeira comissão, a de Constituição e Justiça. Em maio, mês da visibilidade LGBT, o projeto chegou a ser declarado pronto para votação pela comissão, mas ainda não entrou na pauta.

Também tramita na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei João Nery (5002/2013). A proposição, que leva o nome do primeiro transhomem operado no Brasil tem a autoria dos deputados Jean Willys (PSOL-RJ) e Erika Kokay (PT-DF) e determina que o reconhecimento da identidade de gênero é um direito do cidadão.

As pessoas trans conquistaram o direito ao uso do nome social nos estabelecimentos municipais de Florianópolis em janeiro deste ano, quando foi promulgada a lei nº 10.186/2017. Proposta e defendida na Câmara Municipal pelo então vereador Tiago Silva (PMDB), a lei reconheceu a designação do nome próprio pelo qual a pessoa travesti ou transexual se identifica em todos os órgãos e as entidades da administração pública municipal e empresas privadas, situadas no município de Florianópolis.

Segundo a norma, a pessoa travesti ou transexual pode requerer a inclusão de seu nome social em documentos oficiais e nos registros dos sistemas de informação, cadastros, programas, serviços, formulários, prontuários e outros documentos expedidos por órgãos e entidades da administração pública municipal direta, autarquias e fundações. Nas empresas privadas, as pessoas interessadas tem ainda o direito de utilizar o nome social em crachás, folhas de ponto, chamadas escolares, carteiras de estudante e outros documentos de identificação. O nome civil ficaria restrito aos fins administrativos internos, mas mesmo nestes documentos deve constar nome social.

A presidenta do Conselho Municipal dos Direitos LGBT, Guilhermina Cunha, observa que não está expresso na Lei 10.186/2016 a figuração do nome social no cabeçalho dos formulários, o que também fragiliza a garantia do respeito à identidade. A lei é uma vitória, mas o conselho fez a recomendação de que houvesse maior destaque no campo ‘nome social’ para evitar que ficasse ‘escondido’ nos formulários”, afirma. A lei também evita usar o termo “identidade de gênero”, que reforçaria a inclusão de pessoas trans e travestis entre os casos passíveis de punição pela Lei n. 7.961, de 2009 e não prevê punições caso seja descumprida.

Estas duas falhas apontadas pela presidente do Conselho estão corrigidas no projeto de lei proposto no âmbito estadual em março deste ano pelo deputado Cesar Valduga (PCdoB),  procurando assegurar o respeito ao nome social de pessoas transexuais em todo o estado catarinense. O deputado Marcos Vieira (PSDB) foi designado relator pela Comissão de Constituição e Justiça, mas ainda não apresentou relatório. A CCJ é a primeira entre as três comissões que a proposição deve passar antes de ir a plenário. Depois dela, ainda resta passar pelas comissões de  Trabalho, Administração e Serviço Público e de Direitos Humanos.

Atualização:

Segundo a assessoria do deputado Marcos Vieira, o projeto está sendo submetido a consultoria e deve entrar em pauta na Comissão de Constituição e Justiça antes do recesso parlamentar, em julho.

*Atualizada às 13h35min

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  • Ana Claudia Araujo

    Jornalista (UPF/RS), especialista em Políticas Públicas (Udesc/SC), mãe de ninja.

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