Os dez anos da Lei Maria da Penha são também a primeira década de uma nova fase na luta pelo fim da cultura da violência no Brasil. Até 2006, a comunidade feminista se desdobrou em ações nos parlamentos, nos conselhos de controle social, nas ruas e em todos os espaços possíveis para fazer vingar uma lei que obrigasse à implantação de políticas públicas para o combate a violência contra as mulheres. Uma lei capaz de punir estes atos como os crimes que de fato são, com o devido rigor, em substituição às suaves penas pecuniárias. Os embates hoje se acumulam: enquanto parte deles se dedica à aplicação efetiva da lei, outra procura evitar retrocessos.

Hoje, a sociedade começa a absorver que a violência tem várias faces e que todas elas – para frisar: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral – tem origem na cultura machista. A violência física, entretanto, escancara de maneira mais crua as investidas masculinas para tentativa de subjugação da mulher. Considerando que o horizonte da luta é a mudança da estrutura social e, portanto, cultural, a visibilidade dos crimes e a informação para as vítimas tem papeis centrais e são desafios que perduram. Antes da Lei Maria da Penha entrar em vigor, não havia sequer indicadores minimamente representativos dos casos em que maridos, namorados e companheiros – algozes mais comuns – violentavam suas parceiras. As situações ocorriam envoltas pelo manto da normalidade: ninguém se atrevia a meter a colher.

Em 2007, a Polícia Civil de Santa Catarina contabilizava 75 vítimas de violência doméstica em Santa Catarina. Nos anos seguintes, em 2008 e 2009, quando ainda inexistiam delegacias especializadas para atendimento à mulher no Estado, o número pouco variou: 89 e 103 crimes tiveram mulheres identificadas como vítimas. De lá para cá, as denúncias se multiplicaram. O termo feminicídio passou a ser reconhecido pela Justiça. No ano passado, a Secretaria de Segurança Pública do Governo do Estado contabilizou em Santa Catarina 2.292 estupros, 97 homicídios e 265 tentativas de homicídio. Os números justificaram a abertura do debate amplo junto à sociedade. Espera-se também que eles fundamentem políticas de Estado e impulsionem programas capazes de independizar as vítimas em potencial.

Mas o processo tem sido moroso. Em 2010, o Fórum Estadual pela Implementação da Lei Maria da Penha, organização que congregava movimentos feministas e de mulheres de todo o estado, contabilizava que havia apenas 20 delegacias de mulheres, três casas-abrigo e um único Centro de Referência de Atendimento à Mulher Vítima de Violência (Cremv) em todo o Estado. Santa Catarina era um dos únicos estados brasileiros a não oferecer Defensoria Pública Estadual e a não se comprometer com o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher – espécie de convênio com o Governo Federal que garantiria recursos para esses fins. Também não havia nenhum Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, outra recomendação da Lei. As delegacias da mulher chegaram tarde e até hoje não são exclusivas, como prevê a lei, como forma de garantir segurança e privacidade às mulheres.

Mesmo antes de contar com mecanismos mínimos para o funcionamento adequado, as tentativas de remendo da lei construída a várias mãos pelo movimento feminista começaram a pipocar no congresso e no Superior Tribunal Federal – quase todas as iniciativas procurando enfraquecê-la. Os mais recentes projetos que descaracterizam a Lei, como o que atribui à autoridade policial a concessão de medidas protetivas de urgência ou o que propõe a substituição da palavra gênero por sexo feminino.

Cunhar a violência doméstica como crime é apenas o início. A Lei Maria da Penha segue enfrentando empecilhos concretos para a sua implementação efetiva. É preciso seguir sedimentando o caminho para o fim desta cultura perversa. Mesmo com todos os percalços, os resultados são impactantes. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que a lei Maria da Penha tenha contribuído para uma diminuição de cerca de 10% na taxa de homicídios contra mulheres praticados dentro das residência das vítimas em 2015. Mais do que um percentual, este dado nos possibilita imaginar quantas milhares de vidas foram poupadas. Este efeito, sim, incalculável.

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