Em alguns lugares do mundo tem se falado de Justiça Reprodutiva como uma das estratégias de combate à violência contra as mulheres negras, lésbicas, pobres, ciganas, migrantes, indígenas, entre outras que vivam em contextos específicos de vulnerabilidade e precarização.

Isso se deve ao fato de o conceito de Justiça Reprodutiva se aproximar de perspectivas que consideram as diferentes mulheres e as suas diferentes formas de acesso às políticas. Além disso, a Justiça Reprodutiva é centrada numa perspectiva de autonomia imbricada à coletividade, as afiliações e às subjetividades presentes na vida da diversidade de mulheres existentes, ao mesmo tempo em que se distancia de uma autonomia de caráter liberal aprimorada pelos países “desenvolvidos”.

Em tempos de epidemia de Zika Vírus[1], em que as mulheres negras e pobres são as principais vítimas, devido à conjuntura de racismo ambiental e institucional legitimado pelo Estado, é necessário considerar a Justiça Reprodutiva como uma ferramenta de garantia de cidadania dessas mulheres. A violência na qual essas mulheres estão submetidas, seja pela obrigatoriedade de manter uma gestação que não desejam, seja pela falta de acesso a recursos econômicos, sociais e políticos durante a gestação e após o nascimento de suas crianças com Síndrome Congênita do Zika, é de intensa gravidade. Para além do acesso à saúde reprodutiva e ao direito reprodutivo, essas mulheres necessitam de acesso à justiça social.

Entretanto, antes de aprofundarmos nesse conceito é necessário realizarmos um breve resgate histórico de contextualização do termo.

Os conceitos de Saúde Reprodutiva, Direito Reprodutivo e, mais especificamente, Justiça Reprodutiva são recentes. Autoras/es acadêmicas/os e movimentos sociais do mundo todo associam a Conferência de População e Desenvolvimento de Cairo, ocorrida em 1994, como um marco decisório para a conceituação de saúde reprodutiva. Esse marco internacional foi significante para direcionar as ações de Estados, em relação à saúde reprodutiva, de maneira diferente da que vinha ocorrendo anteriormente.

Em vários países, como nos EUA, nas primeiras décadas do século XX, e no Brasil, nas décadas de 1970 e 1980, as políticas de controle de natalidade tiveram como foco as mulheres negras, por essas serem causadoras de um problema que deveria ser solucionado: a reprodução da raça negra. No Brasil, além das mulheres negras serem o foco do controle de natalidade, também foram o foco na política de embranquecimento ocorrida concomitantemente à colonização portuguesa e os períodos históricos seguintes. O Estado foi ator legítimo de violações contra as mulheres negras por meio de uma política eugênica de esterilização que diminuía a natalidade, ao mesmo tempo em que se embranquecia a sociedade e, teoricamente, controlava a miséria.

Então, após a Conferência de Cairo, as ações de controle populacional foram alteradas numa perspectiva de compreensão das mulheres como sujeitas de direitos e, portanto, que deveriam possuir e exercer o controle de decisão sobre as suas vidas, com acesso à informação e aos serviços de saúde com qualidade. Nesse mesmo período, e até mesmo anteriormente, os movimentos feministas e negros no Brasil passaram a militar pela legalização e descriminalização do aborto e por políticas de direitos sexuais e direitos reprodutivos. Um exemplo foi a campanha/denúncia contra a esterilização das mulheres negras[2]: “Esterilização – o controle da natalidade ao genocídio do povo negro!”, liderada por Jurema Werneck, em 1991[3].

O termo Justiça Reprodutiva foi então criado nesse contexto. Em 1994, dois meses após a Conferência sobre População e Desenvolvimento de Cairo, ocorreu a National Pro-choice Conference for the Black Women’s Caucus, nos EUA. Nesse encontro, as mulheres negras adotaram o termo Justiça Reprodutiva como uma forma de integrar a saúde reprodutiva à justiça social, devido às iniquidades e disparidades sociais das mulheres negras, mulheres de cor e outras mulheres mais vulnerabilizadas. Entretanto, o termo foi popularizado apenas em 2003, após a Conferência Sister Song, de acordo com a Loretta Ross, coordenadora nacional do Sister Song Women of Color Reproductive Justice Collective[4].

O conceito Justiça Reprodutiva aparece como fundamental para falar sobre o combate às inúmeras formas de violência contra as mulheres, porque ele destaca o acesso aos recursos econômicos, sociais e políticos para que as mulheres possam tomar decisões saudáveis sobre os seus corpos, sexualidade e reprodução, mas não de uma maneira apenas individual, mas levando em conta as suas famílias, seus contextos e as suas comunidades[5]. Por isso, nesse momento de epidemia de Zika, devemos exigir do Estado o acesso à justiça social amplo integrado ao acesso à saúde reprodutiva, ou seja, a efetivação de uma Justiça Reprodutiva que garanta o exercício da cidadania das mulheres vítimas de Zika.

Mas… o que diferencia a justiça reprodutiva de saúde reprodutiva e direitos reprodutivos?

A saúde reprodutiva está relacionada a um modelo de prestação de serviços e de cuidados em saúde que atenda às necessidades das mulheres e meninas. É uma abordagem direcionada ao acesso. Entretanto, como essa abordagem é configurada numa lógica de acesso individual, não atinge as raízes das causas das disparidades na saúde. Portanto, se configura de forma limitada, pois permite que diferentes mulheres tenham diferentes acessos, sem alterar as disparidades sociais nas quais essas mulheres vivem. O que concretiza uma violência às mulheres precarizadas.

Os direitos reprodutivos são compostos por direitos individuais que estão relacionados ao direito à liberdade e à privacidade, por exemplo. As organizações que trabalham para a garantia desses direitos utilizam ferramentas legislativas e/ou de advocacy administrativo nos três níveis do Estado. Entretanto, essa abordagem de direitos reprodutivos seria limitada por dois motivos. Primeiro, porque “esta concepção de escolha está enraizada na tradição neoliberal que localiza os direitos individuais em seu núcleo, e trata do controle do indivíduo sobre seu corpo como central para a autonomia e liberdade. Esta ênfase na escolha individual, no entanto, obscurece o contexto social em que os indivíduos fazem escolhas e ignora as maneiras em que o Estado regula populações, disciplina corpos individuais, e exerce controle sobre a sexualidade, sexo e reprodução” (SILLIMAN, 2002, p. x-xi) [6]. E, segundo, porque as suas reinvindicações estão relacionadas ao advocacy e lobby, o que implica na necessidade de que as mulheres reclamem por seus direitos, o que pressupõe conhecimento, qualificação e informação. Por exemplo, para que um grupo de mulheres escreva vários e-mails para deputados/as falando sobre seus direitos reprodutivos, é necessário que este grupo seja letrado e que saiba os protocolos a seguir. O que exclui mulheres mais vulnerabilizadas, indígenas e migrantes, por exemplo.

A abordagem da Justiça Reprodutiva reconhece as histórias de opressão e abuso nas comunidades e usa como estratégia de mudança as organizações de meninas e mulheres para alterar a estrutura de poder. Portanto, a Justiça Reprodutiva reconhece os contextos de vulnerabilidade no exercício de cidadania das meninas e mulheres. Ao reconhecer as intersecções de múltiplas opressões (raça, gênero, classe etc), essa abordagem trabalha conjuntamente com as outras duas abordagens supracitadas (saúde reprodutiva e direito reprodutivo). Entretanto, um dos grandes desafios dessa abordagem é o trabalho contra um status quo, o que implica também em lutar contra quem ocupa o poder, além de ser uma ação e trabalho que envolve um longo prazo, mas que pode resultar em significativas mudanças.

A luta pela liberação das mulheres é indissociável do controle da reprodução. Assim, uma vida sem violência também requer avanços relacionados aos quadros de saúde reprodutiva, direito reprodutivo e justiça reprodutiva acompanhados do amadurecimento das demandas políticas de mulheres de uma forma mais próxima das complexidades relacionadas aos quadros mais amplos e diversos de mulheres. O controle populacional realizado no passado, por meio do controle da reprodução das mulheres em idade fértil, hoje é realizado por meio do genocídio e do encarceramento em massa da população negra, da restrição da migração, entre outras formas de discriminação [7].

Assim, nessa campanha de 16 dais de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres, também devemos visibilizar e resgatar violências passadas que se metamorfosearam em outras formas de violência ainda presente na vida de milhares de mulheres em todo o mundo. Precisamos fortalecer organizações de meninas e mulheres para alterar a estrutura de poder, mas sem abrir mão de outras formas de luta de garantia de direitos. É um momento no qual devemos denunciar e visibilizar as diversas violências, mas também procurar meios de nos apropriarmos de saberes da ginecologia autônoma, do autoaborto, do uso de ervas e de técnicas de autocuidado coletivo entre mulheres, por exemplo.

Rayane é integrante da Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, Coturno de Vênus e mestranda em sociologia na Universidade de Brasília.

[1] Aqui me refiro apenas ao Zika Vírus, mas é importante destacar que a epidemia é tríplice: além da Zikas, as mulheres (e a população no geral) estão sendo afetadas pela Chikungunya e pela Dengue. Essas três doenças afetam diretamente o dia a dia de milhares de mulheres e as suas condições de saúde.

[2] Sobre esterilização das mulheres negras no Brasil ler: “Feminismo negro: raça, feminismo negro: raça, identidade e saúde reprodutiva no Brasil (1975-1993)”. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ref/v20n1/a08v20n1

[3] Nesse link é possível acessar o Jornal Art Mulheres de 1991 que teve como Capa a problematização da esterilização das mulheres http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PARTMAM071991004.pdf

[4] Mais informações em  https://goo.gl/Goq9nH

[5] Ler mais em “A New Vision for advancing our movement for reproductive health, reproductive rights and reproductive justice”, disponível em http://strongfamiliesmovement.org/assets/docs/ACRJ-A-New-Vision.pdf

[6] Jael Silliman and Bhattacharjee, A (eds). Policing the National Body, Cambridge, MA: South End Press, 2002, pp. x-xi.

[7] Algumas dessas ideias são desenvolvidas no texto “A New Vision for advancing our movement for reproductive health, reproductive rights and reproductive justice”, disponível em http://strongfamiliesmovement.org/assets/docs/ACRJ-A-New-Vision.pdf

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