“Sempre me chama atenção as histórias de horrores que temos. A gente se reconhece na dor. As violências que sofremos têm construções semelhantes e logicamente todas são marcadas estruturalmente pelo machismo. Eu me surpreendo com o relato das entrevistadas porque desconhecia suas experiências, como por exemplo, de estupro pelo tio na infância ou de violência cometida pelo ex-companheiro.” O relato é da fotógrafa e ativista Jessica Michels sobre os depoimentos impressionantes feitos pelas participantes do projeto “Maio em Mulheres”, em Joinville (SC).

O “Maio em Mulheres”, idealizado e lançado em 2013 por Jessica durante a faculdade, consiste na produção de fotos e entrevistas com mulheres sobre feminismos, questões de gênero e experiências diversas de resistência, de luta, de sororidade. Ao todo, o projeto é composto por 31 ensaios fotográficos. “Em 2015 eu até cheguei a produzir uns dez ensaios, mas acabei postando só dois. Não consegui manter ele nessa estrutura de postar ‘diariamente’ e acabei abandonando. Hoje, já me desprendi da regra de fazer uma por dia, mas vou manter a ideia de ter 31 mulheres. Tanto que essa semana irei fazer de dois a três ensaios por dia”, conta a ativista.

Todo o processo, desde o convite e escolha das mulheres para participarem do projeto até a produção necessária para as fotos e a execução das entrevistas, é feito por Jessica. Além de disposição e paixão pela fotografia e feminismo, a ativista conta, claro, com equipamento fotográfico para colocar o “Maio em Mulheres” em prática. Mas, infelizmente, ela foi roubada no dia 31 de março, na região central de Joinville.

Para tentar recuperar as perdas, a ideia inicial era fazer uma “vaquinha”, relata Jessica. Porém, mais tarde decidiu-se como alternativa financiar o projeto pelo Catarse – que fica disponível para receber colaborações até quarta-feira (17). Mais de 80% do projeto já foi financiado. Mas, se o dinheiro necessário não for arrecadado no tempo determinado, as ajudas financeiras serão devolvidas e o projeto inviabilizado. Confira todos os detalhes aqui e conheça as possíveis formas de colaborar: www.catarse.me/maiomulheres.

Apesar das dificuldades, a edição o projeto deste ano está sendo encaminhada, segundo Jessica. Isso porque algumas amigas têm emprestado máquina fotográfica para que possa produzir os ensaios. “Já temos três mulheres, suas fotografias e suas experiências postadas no Facebook. A ideia é finalizar ele ainda no mês de maio e, em junho, fazer um ‘extra’ com os ensaios que estão ‘engavetados’ desde 2015, além de três ensaios especiais que realizarei com as minhas duas avós e minha mãe.” Veja a página do “Maio em Mulheres”.

Se a meta de arrecadações for atingida, Jessica também deverá investir em uma nova plataforma para o projeto. “Pretendo deixar ele público num site. Por enquanto, já que ainda estou em campanha, vamos manter as postagens no Facebook. E migrarei o conteúdo para o site que eu ainda vou programar, desenhar e essas coisas técnicas todas ainda. Mas vai acontecer, se o financiamento coletivo der certo.”

Em entrevista ao Portal Catarinas, Jessica aprofunda a conversa sobre a importância do projeto como contrapartida social, o que ela pretende mostrar com os ensaios fotográficos e as entrevistas com as mulheres, sua relação com o feminismo e como surgiu seu interesse sobre as questões de gênero. Confira!

“É um exercício de sororidade. Já nesta edição fiz acolhimento de denúncia de agressão com uma das meninas e, inclusive, uma amiga dela também veio me procurar para pedir orientação jurídica. Eu não sou da área, mas de alguma forma, sou um primeiro contato de muitas mulheres exatamente por causa deste projeto.”

 

CATARINAS: Agora, a ideia é retomar o “Maio em Mulheres” com a proposta de ‘contrapartida social’, conforme é informado no Catarse. O que o público pode esperar de novo nesse sentido e qual deve ser o impacto social da próxima edição?
JESSICA: Então, a proposta permanece a mesma. Chamo mulheres feministas e converso sobre suas vivências. O que muda com as edições é a entrevista mesmo. Eu deixei de lado a Jéssica jornalista da edição de 2013 e agora sou mais a Jéssica amiga. Já não é mais uma entrevista, é uma conversa. É um exercício de sororidade. Já nesta edição fiz acolhimento de denúncia de agressão com uma das meninas e, inclusive, uma amiga dela também veio me procurar para pedir orientação jurídica. Eu não sou da área, mas de alguma forma, sou um primeiro contato de muitas mulheres exatamente por causa deste projeto. Isso vai de encontro na ideia de ‘contrapartida social’. E isso não acontece só em maio. Acontece sempre. Eu confesso que às vezes não consigo dar a atenção necessária para todas as pessoas que me procuram, mas eu me esforço, no limite da minha sanidade e disposição de tempo para acolher diariamente relatos de abusos, agressões, estupros que recebo pelo Facebook mesmo. Isso pra mim é feminismo. Por mais que eu compreenda que eu não sou um órgão responsável, eu não sou o Estado, eu não sou a polícia, eu tento fazer o que está ao meu alcance como uma pessoa. O Maio em Mulheres fez marcações bem fortes na minha vida. Por exemplo, se você digitar ‘feminismo Joinville’ no Google, aparece meu nome. Não falo isso de uma forma egocêntrica, mas pra explicar o como meu nome é associado a luta, e que por isso muitas pessoas chegam a mim procurando ajuda.

CATARINAS: Quais são os critérios para escolha das mulheres para participarem do projeto?
JESSICA: A pergunta que nunca sei responder (risos). Chamo minhas amigas feministas da cidade, e elas indicam outras mulheres, seja por defender uma pauta específica do feminismo, seja por sua história de vida, seja por ser um perfil diferente.  Eu já rascunhei uma lista de mais de 50 mulheres para essa edição. Hoje te digo que o critério é ser mulher, se considerar feminista e bater os tempos de agenda com a minha produção. Por exemplo, essa semana foi extremamente complicada, marquei e remarquei vários ensaios. As mulheres trabalham, estudam, têm filhos e inúmeras atividades. E eu também.  

CATARINAS: As roupas, cenários são escolhidos pelas entrevistadas? Como funciona esse processo?
JESSICA: Algumas coisas planejamos e outras não. Por exemplo, minha ideia é sempre fazer em espaços públicos para facilitar e marcar resistência. Eu até estou ficando na casa de uns amigos aqui no centro para facilitar a locomoção e faço tudo de bicicleta. Procuro lugares que elas gostam de frequentar. Mas eu gosto de mostrar uma singularidade da pessoa. A ideia é ocupar a rua, mas para ensaios noturnos apostamos em lugares mais fechados, com iluminação. Neste caso, o melhor seria na casa da pessoa. As roupas é bem escolha pessoal, o que eu chego a pedir é que talvez ela leve algum objeto, algo que marque suas histórias também para relacionar com os trechos das entrevistas que acabam sendo legendas das fotografias.

“Todas as mulheres que participam do projeto marcam bem suas pautas. Hoje eu só pretendo aperfeiçoar meus retratos como um presente para essas mulheres, um registro de luta, de existência.”

CATARINAS: O que você pretende mostrar com as fotografias?
JESSICA: Acho que seria divulgar, enaltecer, disseminar, desmitificar, diversificar e compartilhar os feminismos. Eu lembro que em 2013 rolou uma ideia de mostrar visualmente que nem toda feminista é ‘feia, gorda, mal amada que não se depila e que por isso virou lésbica’. Isso só para resumir esse imaginário coletivo escroto das pessoas que tentam desmoralizar um movimento social político filosófico baseando na aparência estética e sexualidade das mulheres. Todas as mulheres que participam do projeto marcam bem suas pautas. Hoje eu só pretendo aperfeiçoar meus retratos como um presente para essas mulheres, um registro de luta, de existência.

Jessica Michels: “Ser mulher é revolucionário. Ser mulher e romper com as normalidades, regras e padrões sociais regidos ainda em 2017 é algo digno de orgulho.”

CATARINAS: Quais são os temas e questões abordadas com as entrevistadas?
JESSICA: Eu começo sempre perguntando como foi que a pessoa se descobriu feminista, como tudo começou. Legal é perceber que hoje já sei de algumas meninas que tiveram sua primeira experiência com a palavra ‘feminismo’ pelo meu próprio projeto. Eu levo a conversa para uma construção bem pessoal mesmo e depois vou direcionado para uma pauta específica. Percebo que isso ajuda muito na identificação. As pessoas me falam ‘Eu li o que fulana falou, e eu questionei a mesma coisa quando estava na escola’ ou ‘Nossa! Eu li o relato da beltrana e me identifiquei porque na minha casa as coisas também eram assim’. Há reconhecimentos nas histórias das mulheres.

CATARINAS: Você pode nos contar um (ou mais) caso das mulheres entrevistadas e fotografadas que tenham chamado atenção e impressionado de alguma forma?

JESSICA: Os ensaios e entrevistas que mais me marcaram foram da Rebecca Neto, em 2013, e da Christie Hassel, em 2014.  Rebecca é uma das mulheres que mais admiro no mundo e, na época, fiquei bastante tocada com os seus relatos sobre a maternidade e as mudanças no corpo. E o da Christie, que também é fotógrafa, pelos mesmos motivos. Acredito que eu tenho uma ligação com a pauta, mesmo não sendo mãe e nunca ter engravidado. Mas os relatos sobre o corpo têm muita relação comigo, com minha auto fotografia e com o meu mergulhar no movimento feminista. São as identificações que marcam mesmo.

Em 2014, Christie Hassel foi uma das mulheres fotografadas no “Maio Mulheres”. Na entrevista, ela falou sobre mudanças no corpo

CATARINAS: Qual é a sua relação com o feminismo? Começou a partir da criação do projeto?
JESSICA: Se eu for datar, acho que começou em 2008, quando entrei na faculdade. Eu comecei a ler blogs feministas e me identificar cada vez mais com tudo. Lembro que participava de grupos no Orkut sobre o movimento e lá eu fui aprendendo e desconstruindo muita coisa. Mas foi o projeto mesmo que marcou isso na minha vida. É como um sobrenome ‘Jessica feminista’. Minha relação com feminismo teve muitos momentos, teve uma fase mais teórica, de pesquisa, de ser ‘feminista de PDF’ mesmo que eu nunca tenha lido um livro inteiro da Beauvoir ou mesmo participado com um artigo no Fazendo Gênero; teve uma fase mais megafone, de rua, de articulação política; teve uma coisa mais de textão de internet, de muitos debates tensos, de likes e de compartilhamentos; teve um momento de negação do academicismo, de querer romper com fronteiras e falar de feminismo com quem não chegou ao ensino superior; da fase de ir fazer palestras e roda de conversa nos mais diversos lugares e sempre sair renovada e confiante de que é possível, sim, ajudar a melhorar o mundo. Eu acho que sou todas essas coisas, feministicamente falando, na medida do possível.

Em 2013, Rebecca Neto participou do “Maio em Mulheres” e tratou sobre o tema maternidade

CATARINAS: Qual é a importância de abordar as questões de gênero e feminismo por meio da fotografia e do depoimento de mulheres?
JESSICA: Fotografar mulheres diz muito sobre empoderamento feminino. A fotografia é uma ferramenta para autoconhecimento, para aceitação e para estimular o amor-próprio. Isso sempre funcionou pra mim e, por isso, decidi oferecer isso para outras mulheres também.  Além disso, confesso que me incomoda a quantidade de projetos de nu feminino que querem mostrar ‘toda a diversidade de corpos femininos e blá blá blá’ feito por homens fotógrafos. Respeito mesmo os fotógrafos profissionais que são ‘especializados em fotografia feminina’ e realmente são profissionais no que diz respeito e educação; mas me incomoda muito a quantidade de relatos de abuso que ocorrem nesses projetos. E de como é complicado ‘ferir o orgulho’ de um profissional da fotografia por meio de denúncias e de como as modelos acabam virando ‘loucas, histéricas e ingratas porque eu fiz umas fotos bem lindas e deixei-as usar no Facebook’. Eu definitivamente não estou falando de um caso, estou falando de padrões de comportamento machista que ocorrem em qualquer canto deste planeta. Reforço: eu não disse que todo fotógrafo homem é abusador e que também não nego que possa ocorrer abusos por uma mulher fotógrafa. Enfim, por conta desse desabafo acho que já respondo a necessidade de discutir gênero também no mercado da fotografia, seja no ramo comercial ou artístico.

CATARINAS: Qual é a mensagem que você pretende passar com esse trabalho?
JESSICA: Resistência, amor e luta. Acho que são coisas que transparecem em todos os ensaios. Não queria entrar nos clichês de falar sobre como todas as mulheres são guerreiras, mas definitivamente, mulheres enfrentam lutas, por vezes invisíveis, diariamente para apenas existir. Ser mulher é revolucionário. Ser mulher e romper com as normalidades, regras e padrões sociais regidos ainda em 2017 é algo digno de orgulho, sim. Superar as barreiras visíveis e invisíveis do machismo e do patriarcado e continuarmos vivas é um ato afrontoso.

Rafaela Franz é uma das participantes do projeto joinvilense deste ano

CATARINAS: Você comanda este projeto sozinha? Conta com uma equipe? Quem são os envolvidos?
JESSICA: Sim, digamos que sim. Eu tive ajuda do meu irmão no início do projeto com a criação da marca, planejamento, agendamento das sessões e até edição das fotos. E também de algumas amigas para fazer a transcrição de entrevistas lá em 2013.  Mas eu carrego todas as mulheres comigo. Todas as 50 mulheres que já fotografei são autoras do projeto porque são suas histórias que são retratadas por mim.

CATARINAS: Mas para o projeto continuar ativo, um financiamento coletivo está sendo proposto pelo Catarse em razão do roubo dos equipamentos que eram utilizados para a produção das fotos, certo?
JESSICA: Eu e meus amigos fomos roubados no início do mês passado. Além da minha câmera fotográfica, foi também um notebook e um celular. Diante disso, tivemos a ideia inicial de fazer uma vaquinha simples. Eu recebi um incentivo de uma amiga muito maravilhosa, Vanessa Bencz, que já tinha experiência em financiamento coletivo para tentar fazer a arrecadação via Catarse. Com a proximidade do mês, decidi aliar a produção do Maio em Mulheres e usar impressos do projeto como recompensas básicas. Faltam apenas 16% e toda ajuda é muito bem-vinda. Empenhei em oferecer recompensas bacanas – até vale pizza para a cidade de Joinville. É bem simples de doar, dá para fazer uma contribuição por meio de cartões de crédito e também por pagamento em boleto. E só lembrando que é uma campanha ‘tudo ou nada’. Se não bater a meta até o fim do dia 17 [nesta quarta-feira], não recebo nada do que já arrecadei.

Amanda Silva também faz parte do projeto “Maio em Mulheres” 2017

CATARINAS: Quer deixar uma mensagem para quem te lê?
JESSICA: ME AJUDA. OBRIGADA. Eu queria mesmo pedir ajuda das mulheres, das manas feministas e de todas as pessoas que sentem empatia pelo tema do projeto. E reforçar que não é só financeiramente que você pode me ajudar. Tenho muitas pessoas que gostariam de ajudar, mas estão desempregadas no momento e estão me ajudando muito na divulgação do link do Catarse, seja mandando no Whatsapp da família, para a tia mais estável financeiramente, seja divulgando no coletivo feminista da sua cidade, no grupo da faculdade. Aceito de coração essa ajuda de mídia, lembrando que o link do Catarse por ser link externo, ainda tem pouco alcance para nossa rede de amigos, por isso preciso mesmo de ajuda pra divulgar. Obrigada.

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