Sabe o problema? Eu acho que tem gente que não se percebe no mundo, não se localiza.
Acha que tá num grupo e tá em outro, falta posicionamento de cena mesmo.

João Doria é um cara elitista porque é da elite, entendem? João Doria governa pra elite, e por isso faz um governo estético. Porque rico gosta é de estética. Vocês já viram banheiro de rico? É bonito demais. O banheiro. É nesse nível de preocupação estética que a elite chega: em gastar o valor de uma casa inteira num banheiro que, muitas vezes, tem o tamanho de uma casa inteira.

Aí o Doria fez uma campanha puramente estética, e faz uma gestão puramente estética, ele se veste de povo no melhor estilo do “quanto vale ou é por quilo?”, porque a elite gosta de povo no marketing, só no marketing. E Doria entende de marketing. Mas governar, governar mesmo ele faz pra quem não gosta de povo, mas gosta de muro verde.

O problema, e aí vem o problema, são as pessoas não sabendo se localizar. As pessoas tem dificuldade de entender que elas não tão no mesmo grupo do João Doria, e dificilmente estarão algum dia.

Pra entender, eu cresci na periferia de Curitiba num condomínio da Cohab, cês sabem o que isso significa? Eram apartamentos de 47m², com três quartos e 1 banheiro. Galera não morava sozinha lá não, não era “kitchenette”, era apezão mesmo, de morar a família toda e o cachorro. (Falei que tem banheiro de rico que é do tamanho de uma casa inteira, né?)

Era o bairro com a maior quantidade de favelas da cidade.

E aí entra o problema: a galera dos prédios achava que tava muito distante da favela. Mas muito. Que na favela tinha vagabundo, que eles que estavam ali no apartamentão com os dogs vacinados e alimentados eram tão mais merecedores do mundo, porque se esforçavam. Porque não se envolviam com droga. Tinham vizinhos que se envolviam, tiveram uns que morreram até por isso, aliás, morreram eles – “mas foi se meter onde não devia, não é? Saiu dessa vida honesta que garantiu a todos ali um apezinho da Cohab, se meteu na bandidagem, e aí não quer morrer? Não é?!”

E o que separava a gente ali no apê da favela da rua do lado, muitas vezes, era ter chego antes na fila da Cohab, só isso. Mera fatalidade. Da mesma forma que o que separava nós, cidadãos de bem, dos que “se meteram com a bandidagem” foi uma sequência de acasos tão fora do nosso controle que chega a ser ridículo chamar isso de mérito, de escolha, de valor, do que você quiser chamar pra se sentir melhor que os outros.

É preciso muito pouco pras pessoas se sentirem mais merecedoras de dignidade que as outras, mas muito pouco. Uma rua de distância e um apê de 47m² financiado pela Caixa em mais prestações do que a gente vai viver pra pagar.
Ou um salário que permita pagar aquela viagenzinha pro exterior em 10x.

É só isso que precisa pra galera começar a se sentir mais perto da high society que da periferia onde vive.
Pra galera se solidarizar mais com a preocupação estética dos ricos que com o sofrimento dos vizinhos, mais com um mercado financeiro que sequer entende como funciona que com o almoço do cara da casa da frente. É só isso, é esse pouquinho, nada além.

E se ali na rua da frente a coisa já é assim, imagina quando você vai pra um bairro mais classe-média-que-se-acha-alta, imagina! Eu namorei um cara desses bairros, ele era muito legal, de verdade mesmo, mas morava num apartamento que dava 5 do meu, com mais quarto que gente, e o resto da família reclamava tanto da vida, da política, da pobreza em que estavam vivendo, do custo de manter 3 carros, reclamavam de ele ir na minha casa porque a vizinhança era feia (até isso a gente tem que ouvir), senhor, como reclamavam. Foi na casa dele que ouvi que eu só era de esquerda porque era muito jovem e não sabia do que tava falando. Pois é.

Hoje, por uma sequência de fatalidades outras e de filas em que eu cheguei primeiro, eu moro num bairro da classe-média-que-pensa-que-é-alta paulistana e você vê a superioridade escorrendo no hall de mármore. Você vê. E mesmo a família daquele ex-namorado, mesmo meus vizinhos de agora, mesmo todos eles, tão longe da alta sociedade com a qual solidarizam. Mesmo eles.

Porque o que coloca a maioria de nós nesse mar de privilégios que a gente vive são acasos, nada além de acasos.

Nós não estamos no grupinho do João Doria. Somos meros assalariados, ou, no máximo, autônomos e pequenos empresários – bela autonomia. Não tô diminuindo isso que vivemos não, muita gente daria os órgãos pra estar onde estamos. O que estou dizendo é que nós não estamos do lado daqueles que controlam 52% do PIB nacional, nem nunca estaremos.

O sucesso de caras como João Doria vem de fazer parte de nós acreditar que nós só não somos da elite por falta de oportunidade, porque “os governos de esquerda ficam usando o nosso dinheiro pra sustentar vagabundo”. Sério, vocês acreditam mesmo nisso?

O sucesso de um cara como João Dória vem de você acreditar que com muito esforço você um dia vai ter um banheiro de 47m² – o que pode até ser que um dia você tenha mesmo – e, aí é o pior, de fazer você acreditar que isso é verdadeiramente um indicativo de sucesso na vida.

E acreditando nisso e vendo o mundo com os olhos do patrão que você não é – ainda que patrão você seja – você começa a ficar do lado de uma elite que compra teu vizinho pobre pra fazer comercial pra você acreditar que você não é igual seu vizinho, que você é melhor que ele, e que só não é ainda melhor porque tem alguém usando seu valioso dinheiro pra sustentar seu vizinho e impedir que seu vizinho rompa as amarras da vagabundagem e um dia seja tão bom quanto você. Mas veja só: eles tão falando do seu vizinho ainda assim.

E começa a defender medidas puramente estéticas porque na falta de um banheiro bonito você quer, ao menos, uma rua bonita, sem aquele pobre feio, sem aquela periferia suja, sem seu vizinho.

Começa a defender um prefeito que manda demolir uma casa com gente dentro. Uma casa. Com gente dentro. Isso não te choca? Porque deveria. Era uma casa e tinham pessoas lá dentro. Não foi um acidente, não vamos tratar isso como um “ops, tinha gente mesmo, que coisa, mas acontece, bola pra frente…”, né?

Eu não estou falando que sei a resposta para o problema das drogas, da população de rua, da população em qualquer situação de vulnerabilidade.

Mas não existe nenhuma corrente, nenhum estudo, nenhum tipo de raciocínio lógico (ou minimamente humano) que nos leve a acreditar que sair atirando em gente e demolir uma casa com gente dentro é uma resposta razoável pra qualquer problema.

A única coisa que faz uma pessoa ver alguma via de defesa dessa ação, uma mínima via de defesa de uma pessoa que autoriza isso, de ficar do lado de um prefeito que já se mostrou ser altamente higienista e pouco preocupado com a efetividade de suas medidas, é a vontade de ter um lugar bonito pra excretar.

Temos uma elite doente por estética, mas você pode não se contaminar, você não é vizinho do João Doria, você está muito mais próximo das pessoas em quem ele manda atirar, não esqueça disso.

E com isso em mente, eu sugiro que defenda o direito à dignidade dessas pessoas como se fosse o seu, porque é.

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