Agosto de 2016 marca profundamente a história brasileira com o desfecho do processo de impedimento da primeira mulher a ascender ao cargo de Presidenta da República no Brasil. O Senado Federal foi o palco deste capítulo que deixa marcas indeléveis na ainda frágil democracia brasileira. Foram mais de 13 horas de enfrentamento, em que Dilma Rousseff apresentou, ela própria, sua defesa diante da acusação de crime de responsabilidade fiscal – as pedaladas – que serviram como cortina de fumaça para submeter o país a uma nova agenda neoliberal. Nunca é pouco reforçar que vivemos um golpe de estado institucionalizado e articulado entre o judiciário brasileiro, os meios de comunicação concentrados, a representação política do empresariado nacional e os interesses do capital internacional.

Dilma encarou a sabatina do Senado respondendo à altura ao conjunto das forças conservadoras que o compõe. Demonstrou serenidade, manteve a coerência ao longo de um dia exaustivo, reforçou sua trajetória política. 29 de agosto entra para a história das mulheres brasileiras, sobretudo, ante a imagem solitária de Dilma a enfrentar de forma altiva uma esmagadora maioria masculina, descendente da elite escravocrata e patriarcal. Simbólico.

O calvário de Dilma não passou sem resistência ou apoio popular. Movimentos de juventude e de mulheres protagonizaram as mobilizações contra o impedimento, em conjunto com trabalhadorxs da cultura, jornalistas e artistas que cumpriram papel essencial para que o golpe fosse denunciado como uma articulação entre as elites brasileiras e os interesses internacionais. Os movimentos de trabalhadorxs sem terra e trabalhadorxs sem teto também demonstraram disposição para enfrentar o momento de recrudescimento sobre a classe trabalhadora brasileira. As forças democráticas e populares seguem na tentativa de construir uma pauta mínima em comum, concentrada na defesa de direitos, mas longe de avançar para uma unidade programática superior aos tensionamentos das últimas décadas.

Dos governos petistas, cabe destacar que limitaram seus esforços, deixando para trás pautas essenciais como a reforma agrária e urbana, novos marcos regulatórios para a comunicação e a reforma política. A falta de medidas estruturantes fomentou a insatisfação social e promoveu o rompimento gradativo do povo com o projeto político, não foi à toa que o cenário mudou após as jornadas de junho de 2013. No entanto, também levaram adiante políticas públicas consideráveis no enfrentamento às desigualdades raciais e de gênero, para a juventude e para a comunidade LGBT.

A questão de gênero neste processo é, talvez, a mais latente. Na transversalidade entre os interesses diretos do capital, no primeiro plano é resplandecente a misoginia e o machismo. A narrativa construída em torno da liderança de Dilma, desde o início, insistiu na “incapacidade” e na “instabilidade” atribuídas às mulheres e das quais Dilma não estaria imune. A presidenta sempre teve sua competência e autonomia questionadas pela “opinião pública”. Também não foi poupada da desestabilização moral, pesando cotidianamente sobre ela os estereótipos: durona, mulher-macho, histérica. Emblemático para um país que apresenta índices vergonhosos de violência contra a mulher. O Brasil é o quinto no mundo em assassinato de mulheres e a cada 11 minutos uma mulher é estuprada em alguma de suas cidades. O apedrejamento moral de Dilma demonstra o quanto é presente a cultura da violência contra as mulheres em nossa sociedade.

No quesito representação política, não é propriamente de assustar que o Brasil do impeachment de sua primeira presidenta demonstre baixos índices de presença feminina nos espaços de poder. Na participação de mulheres no parlamento, o país está atrás das principais democracias do mundo. Segundo a União Interparlamentar (UIP), em um ranking de 190 países, o Brasil ocupa a 116ª posição. Sempre é importante lembrar que no Brasil apenas 10% das congressistas são mulheres.

Todo esse processo reforça o quanto é longa a caminhada. O fosso entre ricos e pobres, homens e mulheres, brancxs e negrxs ainda reflete os desafios de nosso tempo. Atingir a equidade de gênero, a igualdade racial e o exercício pleno da democracia, no Brasil, é enfrentar leões. Como Dilma fez ontem, como fazem diariamente as mulheres brasileiras.

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