Desde o episódio controverso da performance com nu artístico do artista Wagner Schuartz no MAM, em São Paulo, tem me chamado a atenção alguns marcadores bem nítidos do machismo operante e estruturado da nossa sociedade.

Afora toda a polêmica se é arte ou não, se a criança deveria tocar ou não naquele corpo exposto, o que capturei como sintomático, além da onda neoconservadora míope que confunde a capa do disco do Pink Floyd com arco-íris LGBTQI+, foi o desconforto em ver um corpo masculino objetificado. Claro; coisificar corpos, dentro da lógica conservadora, é coisa que se faz com o feminino. No carnaval, na praia, na rua, na chuva e na Fazenda ou nos BBBs da vida- tanto faz- é o corpo da mulher que deve estar a mostra para ser avaliado, analisado e considerado “comível” ou não, no linguajar que tanto conheço no meio da “homarada” da música. Já ouviram falar em homem “comível”? Eu, nunca.

Quando um homem se deixa assim, a mostra, coisificado e mobilizado como boneco, ele se coloca em uma posição marcadamente feminina dentro do espectro conservador. Apenas às mulheres é dado o direito de ser moldável ao gosto alheio. É como se o corpo feminino fosse público, e mesmo quando coberto, não escapa da avaliação e das considerações sobre o peito, a barriga, a bunda, as pernas… Tudo deve estar no lugar certo e duro, de preferência.

Ao corpo do homem, o mistério é a regra. Ninguém vê pinto balançando na Sapucaí. Ninguém vê pinto de fora na TV, em reality show. Nada. É como se o falo fosse algo sagrado, guardado a sete chaves para a merecedora do troféu. Afinal, segundo reza a cartilha do macho alfa, toda mulher precisa de um pinto. Mas, se o falo é algo sacralizado, não se pode banalizar ele, quanto mais expor assim, mole. Se é pra aparecer em público, que seja pronto pro combate e com alguém pra subjugar, senão, é ofensa a masculinidade. Objeto de museu, então…

Grande parte dos homens deposita no pênis a centralidade de suas vidas e de suas relações. Talvez por isso, um homem nu no museu, com o pênis a mostra, flácido e sendo mobilizado como um boneco e com direito a plateia tenha incomodado tanto, para além dos valores da tradicional família brasileira.

A desculpa da pedofilia além de calhorda é hipócrita. Não falar sobre corpo e sexualidade sim, me parece algo bem preocupante para a criação de nossas crianças. No entanto, quando se fala abertamente sobre sexualidade e gênero é que alguns se incomodam. Talvez por isso a vinda da filósofa Judith Butler tenha inflado as mesmas pessoas que se insurgiram contra a performance do nu no MAM.

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Soou-me muito óbvia a relação falo x fala nessas duas questões problemáticas para o neoconservadorismo. Quando uma mulher fala a partir de uma posição intelectual respeitada sobre sexualidade e gênero, os mesmos que quiseram esconder o falo do artista querem silenciar a fala da filósofa. Mais uma vez, os marcadores do que é próprio para homens e mulheres opera aqui.

O lugar da fala sobre qualquer coisa que importe não é permitido à mulher. Principalmente se ela contestar gênero como uma construção social e um projeto de poder. Essa fala deve ser silenciada, calada, ocultada. O nacionalismo crescente com ares fascistas, aliado ao desconhecimento pétreo da obra de Butler, completaram as cenas dantescas dos últimos dias. Eu, que já li Butler, não me animo a traçar um perfil de sua obra como ao que tive o desprazer de ver na tal petição para evitar sua vinda. Uma coisa tão tosca e inconsequente que se eu, que mal conheço a obra dela, fiquei assombrada, imagino os que de fato, conhecem. Dá uma tristeza pensar que se estuda tanto pra proferir qualquer sentença e de repente o Alexandre Frota vira o intelectual do movimento mais representativo da direita brasileira.

Paradoxalmente, Frota já cansou de mostrar seu falo em uso. Talvez por isso mesmo ele seja o intelectual que representa a direita. Um homem que tem sua performance intelectual medida a partir de seu desempenho sexual. Um homem que é ouvido pelo ministro da educação para levar “novas ideias”, é o que tem de mais representativo no seu currículo os muitos anos de estrelato em filmes pornô. Não tenho nada contra pornô. Só acredito que cada um deva operar dentro do seu campo de conhecimento, e educação e intelectualidade, definitivamente, não são campos de Frota. Mas são campos de Butler, certamente. Por isso mesmo, é que não a deixam falar. Porque ela tem algo a dizer. Porque ela é representativa de um campo de construção de conhecimento ainda negado às mulheres. O campo da filosofia é majoritariamente masculinizado, e uma mulher oriunda deste campo que busca reconstruir as percepções de sexo e gênero é o próprio demônio para os fascistas de plantão.

Minha última colocação é o convite a abordarmos essas censuras e disparates com argumentos que sejam inteligíveis a pessoas que veem intelectualidade em Frota e perigo em Butler. É tentar conversar pelo básico do básico, pelo começo mesmo, mas nunca, nunca desistir. Está puxado, mas não podemos entregar o país ao reino dos falos. Ainda acredito no poder da nossa fala, principalmente, na fala feminina. A revolução virá do ventre, mas antes de tudo, da inteligência e da voz das mulheres, que mesmo quando mudas, ensurdecem os tímpanos do mundo, como diz a grande Conceição Evaristo.

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