Em época de grandes eventos, o pânico moral sobre a prostituição traz à tona nosso medo maior: o de sermos confundidas com prostitutas.

É o estigma de puta atuando com toda a sua força, nos amedrontando, embaçando nossas memórias a ponto de não percebermos o óbvio: seu papel fundamental na manutenção de um sistema patriarcal baseado, em sua raiz, no controle de corpos e comportamentos femininos.

Aconteceu na Copa do Mundo de 2014: as mulheres catarinenses, ofendidas com a publicidade do Bokarra, protestavam nas redes: “os turistas chegarão aqui pensando que Florianópolis é um bordel imenso e nos tratarão como prostitutas”. Mas o que seria isso de “sermos tratadas como prostitutas”? Por que é que não nos aterrorizamos também com a ideia bastante possível por analogia de sermos tratadas todas como cozinheiras, por conta de publicidade de restaurante, ou todas como médicas por conta de publicidade de plano de saúde? Parece um questionamento de resposta óbvia, mas precisamos verbalizar.

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Anúncio do Bokarra Club no Diário Catarinense

Creio que se explica: o senso comum alimenta nosso medo (e ódio) por prostitutas. Muitas vezes, na visão de quem não exerce o trabalho sexual, o papel da prostituta parece ser aceitar o que nenhuma mulher dita decente aceitaria. De práticas sexuais esdrúxulas a estupro e espancamento, a prostituta seria uma mulher sem direito à proteção contra abusos e violência. Mas seria isso verdade? Prostitutas não estabelecem seus limites? Prostitutas são mulheres que voluntariamente saem da segurança de suas casas para se expor à violência? Ou seríamos todas mulheres, todas gozando do mesmo direito à segurança e dignidade?

Pois bem. Outro megaevento em andamento. A chegada das Olimpíadas de 2016 acirrou os ânimos, em especial no Rio de Janeiro. Algumas bem intencionadas companheiras feministas chegaram a sustentar, equivocadamente, que maior repressão policial seria o indicado contra a prostituição (e as prostitutas), para tal invocando mesmo os ‘nobres ideais’ defendidos pelo evento. Por um instante, parecem ter esquecido como é a polícia, em especial no Rio de Janeiro. Convenientemente se finge também esquecer quem são as pessoas bem aceitas, quem são as pessoas que condizem com os ‘nobres ideiais’ do evento, e quem são as pessoas que perdem suas casas e são expulsas das ruas nestes períodos.

Na semana que passou, dentro da Vila Olímpica, o atleta marroquino Hassan Saada, de 22 anos, foi preso sob a acusação de ter estuprado duas camareiras.

E neste contexto, o pânico moral e desejo infinito de condenar mulheres que cobram por sexo afloram: pessoas começam a associar o fato à fama de hiperssexualizadas das brasileiras, e ressaltando “nós não queremos ser tratadas como putas, e isso não é putafobia”. Mas o que seria, neste contexto, ser tratada ‘como puta’? E o que pode ser além de putafobia você considerar que determinadas mulheres podem ser violadas, sem que isso esteja necessariamente errado ou seja crime?

Alguns posts no Facebook e comentários na notícia me fizeram lembrar todas as situações vividas no período da Copa do Mundo, e o conjunto de equívocos que, ESTE SIM – e não nosso trabalho – expõe mulheres à violência.

Se você defende que há mulheres que necessariamente DEVEM ser agredidas, que em sua visão estão ali pra isso, você simplesmente reforça um sistema que nos põe a todas em risco, independente da atividade. Este tipo de pensamento justifica que garotos agridam uma empregada doméstica que espera ônibus – pensaram que era uma prostituta, por conta das roupas, e a assaltaram e espancaram. Lembram-se disso?

À parte a putafobia, este tipo de pensamento reforça o estigma – que deve ser combatido, este não pelo bem apenas de mulheres que exercem a prostituição mas pelo bem mesmo da mulher que defende este pensamento – também ela correndo o risco de ser confundida com uma prostituta.

Acabar com o trabalho sexual – se isso fosse possível – não nos isentaria deste risco. O estigma não está ligado ao fato de mulheres cobrarem por sexo.

Não nos use para espantar seus medos, você segue em risco. Não estamos aqui para aceitar a violência à qual as ‘mulheres decentes’ (como as esposas desses homens, talvez) não estão dispostas a aceitar.

O patriarcado nos divide entre boas e más mulheres. O feminismo não deve compactuar com isso.

 

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  • Monique Prada

    Integrante da Central Única das Trabalhadoras e Trabalhadores do Sexo (Cuts). Sua coluna em Catarinas trata de temas com...

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