Há alguns meses acordei sobressaltada: uma conhecida minha foi encontrada jogada numa vala, com marcas de traumatismo craniano, amarrada com um arame farpado.  Estava quase nua porque também tinha sido estuprada. Ainda estava viva. Uma mulher sozinha, mãe solteira de duas crianças pequenas.

Um lado do corpo dela estava tão profundamente queimado que no hospital precisaram amputar um braço e um seio. A notícia saiu no jornal, nas páginas policiais, e não chamaram o homem que fez isso de torturador, assassino ou criminoso. Só se referiram a ele como “ex-namorado”, e contaram que o crime foi provocado provavelmente por “briga familiar”. Não publicaram o nome ou a foto dele para preservá-lo melhor de qualquer constrangimento.

No mesmo final de semana, aqui na cidade mineira em que estou, uma menina que mora nas vizinhanças foi abordada por um homem de 24 anos logo quando estava chegando em casa. Consta nos jornais que ela não se mostrou à vontade pra ir ter com ele a “conversa em particular” para a qual chegou a ser chamada – talvez porque ele estivesse exibindo abertamente uma faca, mesmo estando ainda na rua, e na frente da mãe dela. Então ele a empurrou no chão, deu chutes nela, e a esfaqueou na nuca e nas costas. Ela foi levada ao hospital ainda lúcida e identificou perfeitamente o homem. Nas notícias do jornal, ele também é referido apenas como o “ex-namorado”, e consta que “estava inconformado com o fim do relacionamento” (que mantinha com a menina desde que ela tinha 11 anos). A notícia também saiu apenas num canto das páginas policiais, e ele também está foragido, e não publicaram nem nome nem foto do sujeito. Ele tampouco foi chamado de nenhum nome desagradável – sequer de estuprador, muito menos de feminicida.

Indo mais adiante: vejo que nas rodas políticas locais esses crimes não levantaram qualquer pauta especial. Quase ninguém, fora da esfera estritamente policial, fez declarações sobre o assunto na imprensa. Ninguém convocou passeatas pra protestarmos, campanhas nas escolas, vigílias noturnas. Ninguém cogitou decretar luto oficial ou estado de calamidade pública. O assunto, enfim, não transbordou para além de uma aparente desgraça particular. E olha que estou falando de uma cidade universitária da região mais rica do Brasil, com vida cultural movimentada, considerada “boa pra se viver”.

Esses casos que relatei, no entanto, não estão de modo algum isolados: de acordo com os rigorosos relatórios do Instituto Patrícia Galvão, mais da metade das milhares de mulheres assassinadas por ano, no Brasil, são mortas por homens próximos como maridos, namorados, ex-companheiros, pais e até irmãos. E não são crimes tão súbitos e imprevistos: das mulheres que registram denúncias, quase 70% declaram sofrer agressões diárias ou semanais.

Pois o horror cotidiano que o feminicídio representa rende seus frutos brutais, e atinge claramente todas nós. A cada caso, é como se espetassem uma bandeira bem no meio das praças e das casas e dos corações, nos avisando: “Perigo, comporte-se. A próxima pode ser você.” Porque vejam: entre milhares de mulheres pesquisadas, mais de 90% reconhecem que deixaram de fazer algo importante na vida por medo dessa violência, e 77% reconhecem que o machismo na sociedade afetou seu próprio desenvolvimento.

Nesse contexto, qual de nós não percebe, em si mesma, algum traço dessa profunda herança de medo? Uma certa timidez longamente adquirida, talvez um difuso e permanente receio de desagradar, um hábito de evitar ou adiar conversas e desejos especialmente importantes, um modo de engolir em seco, de nos contermos, de nos encolhermos e tentarmos nos conformar com menos. Passam os dias, os meses, os anos – e sempre ouço gritos abafados das minhas vizinhas, vejo seus rostos se abaixando quando nos cruzamos na rua, vejo suas crianças acanhadas e mudas. Vejo que elas estão acuadas, reféns, com as vidas embaçadas, e poucas cultivam sequer a expectativa de erguer a cabeça. O grande aviso funciona. Porque, de forma mais ou menos consciente, captamos bem isto: o feminicídio é um assassinato com função política exemplar.

De modo que ainda estamos todas numa espécie vala comum, e muito pouca gente com poder, no mundo dos homens, chega a olhar pra este lugar. Sei que minha conhecida ainda passou dois meses inteiros no hospital, mutilada e sem visitas, sem saber sequer onde seus filhos tinham sido jogados. Agora ela está morta, que possa enfim descansar em paz. Agora também morreu mais alguma coisa em mim, como em todas nós.

E qualquer maldito governo golpista vai achar que não é preciso mesmo manter nenhuma estrutura especial para desenvolver ações públicas mais efetivas pra mudar esse quadro, e aliás o ministério que cuidava disso foi mesmo o primeiríssimo a ser extinto “por medidas de economia” – porque é como se todo o luto e toda a luta que ainda sequer fizemos completamente não fossem, afinal, nada demais.

 

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Cristiane Brasileiro

    Doutora em Literatura pela PUC- Rio, professora adjunta na UERJ. Coordena projetos na área de formação continuada para p...

Últimas